Por Saulo di Tarso
Nunca me esqueço do silêncio plasmar causado pelas afirmações feitas por Robert Kudielka, no Centro Universitário Maria Antônia, quando discorreu sobre a arte contemporânea internacional. Ao finalizar sua fala, ele dizia algo no sentido de que tínhamos que descer do vagão simbolizado por Duchamp, Beuys e Kabakov e inventar outra coisa, porque até então éramos ramificação imitativa daquilo que os três decanos trouxeram à realidade da Arte.
A platéia era composta, na sua maioria, por artistas e críticos descendentes ou afirmativos dos três. Na medida em que Kudielka falava, brotava-nos o conjunto de linguagens consagradas por ao menos duas gerações (80 e 90) representadas ali. Nunca mais ouvi ninguém falar a respeito. Mas, de fato, aquele dia foi um divisor de águas, no mínimo, porque delimitou muito bem que havia a necessidade do “fim” de três pregnâncias na arte tida como global: conceitualismo, neoformalismo e a das problemáticas ecológico-visuais proativas existentes na arte de Kabakov.
Daniel Caballero é uma espécie de autófago das artes visuais: quando você menos espera, surge uma harmonia refinada de dentro do caos e do previsível somados na sua linguagem. Harmonia que ele cria ao unir caligrafia à simbologia que traz de uma universalidade da ilustração, universo no qual se insere como criador original. A figura humana que forma edifícios transcende o óbvio e reafirma que do urbano nascem múltiplas realidades. A imagem nasce da palavra.
Sua ação visual resulta de um uso não pré-determinista das técnicas gráficas, digitais e espaciais. Esqueletos e barracos, vida e morte, poesia e cacografias. Você vê um muro na sua pintura? Eis o inverso do graffiti. Engana-se quem pensa que Caballero é uma espécie de neo-antropófago, pois do mesmo modo como a Antropofagia inaugurou a interação nas artes, a interação está transformando a Antropofagia em algo esmaecido no tempo. No que isso vai dar? Honestamente, não sei. Mas este “fim do mundo” que nos conta Caballero o alinha com Daniel Melim, Marcos Garutti, Nunca, Mangue beat, Funk carioca, Re:combo, Cordel do fogo encantado... Isso é Pop? Não, é outra coisa. É algo que veio das ruas onde Nina atuou como atriz e das sertanidades urbanas espalhadas por aí.
Cidades feitas de gente multicultural e multiconflitiva. Uma quarta via, talvez, coletivos pós-tudo feitos por artistas que não precisam descer do vagão, pois jamais estiveram nele.
Segundo o que se vê em “o começo 0.2”, Caballero está fazendo a beleza clássica contemporânea arder no fogo do inferno: aqui, outra iconoclastia: aquela que põe fim à lógica das instituições que pairam sobre todos como uma entidade de absorção, passagem e emissão de um conhecimento visual obrigatório. É uma situação visual livre, que do nanquim ao Macintosh, e daí para as ruas apreendidas pelo seu olhar, vai somando ao graffiti, webart e às mídias, musicais, impressas, sem incorrer a sua postura como figura única das artes visuais estigmatizadas por um circuito. Ao contrário, ele faz parte de um enredo coletivo, legado da geração contemporânea, sem limite de idade ou delimitação de escolas: fim. E viverão felizes para sempre: caos e Kudielka.
* Texto realizado por ocasião da exposição Começos do fim do mundo 0.2, na Livraria POP, São Paulo - 2007.