28.10.14

Ecomarginais


Por Juliana Monachesi, São Paulo Maio de 2014

Até outro dia eu imaginava, do alto da minha leiga ignorância, que a botânica era a mais singela das ciências biológicas. Dedicar-se a estudar plantas, flores, fotossíntese... Só poderia ser uma área do conhecimento absolutamente meiga - afinal, o que poderia estar mais distante e alheio aos ciclos históricos da realidade social humana? Mas, graças ao trabalho que Daniel Caballero desenvolveu para o Festival da Cultura Inglesa, veja você, descobri que existe um ramo da botânica altamente politizado e socialmente engajado. E ainda fica melhor, do ponto de vista estético. A grande bandeira dos botânicos militantes são os marginalizados. Aqueles que espreitam dos terrenos baldios, que vingam quando permanecem invisíveis, que se fortalecem justamente ali onde o descuido do Estado e da sociedade civil os deixa parasitando, ignorados, o bem comum. Refiro-me, obviamente, a esses honrosos membros do reino vegetal denominados... plantas nativas.

Seja marginal, seja herói, já proclamava HO. Em homenagem às marginais plantas nativas de São Paulo, que só brotam sossegadamente nos terrenos baldios da cidade - onde ninguém vai arrancá-las confundindo os arcaicos matinhos que carregam no DNA toda a ancestralidade de nossa natureza selvagem com ervas daninhas -, saio em busca de alguma historiografia marginal de arte para investigar quem seriam os precursores da expedição botânica marginal de Caballero. Todos os indícios me levam ao artista conceitual americano Alan Sonfist, que em 1965 conseguiu convencer planejadores e burocratas urbanos a ceder um terreno ocioso em La Guardia Place, Manhattan, para instalar ali seu Time Landscape, um parque de plantas nativas de Nova York. Pulularam detratores dizendo que as plantas não iriam vingar em uma metrópole contemporânea, mas não só elas estão lá até hoje, como a listinha de espécimes pré-coloniais de Sonfist hoje consta integralmente da lista de plantas autorizadas para plantio na cidade de Nova York.
O que práticas artísticas tão diversas quanto as de Caballero e Sonfist têm em comum? Bem, algumas intenções coincidentes, pelo menos: propiciar um debate público sobre um assunto desconhecido e urgente; dar a ver, por contraste, um contexto privado amplamente ignorado; talvez, quem sabe, transformar alguma coisa no processo. Em 1965, o expediente de erigir um monumento público em forma de parque - na época da land art e da escultura social de Beuys - era uma boa estratégia artística. Quase 50 anos depois, um procedimento semelhante pareceria ingênuo, datado, ou até instrumentalizado pela má consciência científica, a se fiar em Hal Foster e seu alerta sobre a banalização da arte e da política pelas apropriações mútuas entre etnografia / antropologia / sociologia e arte. Então Daniel parte em expedições urbanas e volta com uma catalogação das maiores aberrações botânicas de que se tem notícia, praticadas por... nós, moradores da metrópole.

A viagem pitoresca do artista contemporâneo, descobrimos na presente exposição, já não diz respeito à exploração de mundos inconcebivelmente distantes e inacessíveis nem tampouco a uma enumeração de espécimes e de suas monótonas características, com vistas a uma suposta análise científica, apesar da carga ficcional e subjetiva de todo relato. Hoje, a viagem pitoresca é empreendida sabendo-se, desde o início, subjetiva e ficcional; transcorre num raio de atuação relativamente pequeno, mas nem por isso menos representativo; e resulta num retrato surpreendentemente revelador não mais sobre o "outro", sobre um dado objeto de pesquisa ou uma amostragem exótica que o explorador coleta e leva consigo de volta ao seu mundo, mas sobre este seu mundo justamente, sobre aquilo que chamamos de natureza ao nosso redor, sobre o "semelhante" com que nos deparamos o tempo todo em todo canto.
Nossa ideia de natureza precisa ser revista. Nossas ideias sobre arte e ecologia também. E nossas noções sobre arte política, mais ainda. Vejo aqui nessa Expedição Botânica entre Avenidas Paulistanas um dos trabalhos de arte mais politizados que vi recentemente. Sem ser panfletário, sem deixar de ser arte por um segundo sequer, é uma obra que logra nos engajar numa questão candente. Ao mesmo tempo em que nos põe a pensar em land art, performance, naturalismo, grafite, intervenção urbana, ready made, pintura, desenho, quadrinhos, cubo branco, display, dispositivos expositivos, narrativa, racionalismo, crise da razão, modernismo, pós-modernismo, multiculturalismo, guerras culturais, geografia, etnografia...

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