28.8.08

'Metrópoles' investiga semelhanças e diferenças de 4 cidades: São Paulo, Mumbai, Johanesburgo e Roma


Por Flávia Guerra, para  Estado de São Paulo 6 de Novembro de 2007 

ROMA - Metrópoles estão cada vez mais parecidas no tão apregoado mundo globalizado. Parecidas, mas não iguais. São exatamente as particularidades de quatro grandes cidades do mundo que investiga a mostra Metrópoles - Seus receptáculos e seus receptores. A exposição integra o calendário de atividades da 2ª Festa de Cinema de Roma e ocupa até sábado, 27, o histórico edifício GIL (ex-sede da Juventude Italiana), no Trastevere, tradicional bairro romano que hoje é reduto de galerias e da boemia da cidade.
A mostra é organizada pelo Rialtoccupato (um centro cultural independente e descolado que vem agitando a cena artística de Roma, o Trastevere) e a associação multicultural Stalkagency. Mais que discutir as cidades e o caráter delas, Metrópoles leva às ultimas conseqüências os limites da arte visual. Extrapola o cinema e atinge a linha vertebral das grandes cidades: seus cidadãos e seu modo de interagir com seu habitat. Além de São Paulo, Mumbai, Johanesburgo e a própria Roma são reveladas por vários artistas plásticos.
A seleção brasileira ficou a cargo do curador Alexandre Alves. Ele, que também é artista plástico, escolheu a dedo uma lista eclética e, ao mesmo tempo, coesa. Quatro artistas plásticos se encarregaram de revelar o que consome a cidade e o que a cidade consome: os brasileiros Cao Guimarães, Carolina Novelleto e Daniel Caballero, e o venezuelano Ricardo Alcaide. "Foi pensando exatamente no conceito antropofágico de Mario e Oswald de Andrade que escolhi estes nomes.
São Paulo é uma cidade que devora a todos que vivem nela. Mas também aprende a consumir destes mesmos moradores o que eles têm de melhor. E devolve para o mundo esta cara múltipla que a cidade tem", conta Alves. "Se formos fazer uma comparação grosseira com outros países, é como afirmar que na Índia, muitos estão aderindo às tradições ocidentais, por exemplo, nas cerimônias de casamento. E substituindo as seculares tradições hindus. Em São Paulo, e no Brasil, nós casamos como os católicos, mas não deixamos de cultuar tradições da umbanda. Isso é a síntese de muito do caráter multicultural brasileiro."
Artes
Para este caleidoscópio cultural, o mineiro Cao Guimarães trouxe a Roma a vídeo-instalação Rua de Mão Dupla. A obra, que foi sucesso de público e crítica na Bienal de São Paulo em 2002, é um jogo-documentário em que o artista propôs a troca de casas entre moradores da cidade. Cada um passava um dia no universo do outro. "Quem nunca teve a curiosidade de saber como vivem as pessoas de certas casas ao passar na frente delas? Esta é a parte mais íntima de uma cidade", comenta Alves.
Já Carolina Novelleto apresenta os Nós da grande cidade. Nós, a primeira pessoa do plural. Nós, os entraves destas tantas pessoas plurais. Negros, brancos, índios, orientais, italianos, judeus e tantos outros grupos étnicos formam a teia paulistana, que tem seus buracos, mas forma um tecido social colorido e encantador. Enquanto isso, Daniel Caballero construiu em plena galeria GIL uma típica favela brasileira. Um barraco é a síntese da ‘saudosa maloca’. Uma janela deste barraco é a porta de entrada para a grande favela que se abre. É o Começo do Fim do Mundo, obra que exibe estes espaços de vivência comuns e apertados. Espaços que dividem o imaginário dos que visitam a exposição e fazem sua crítica à sociedade de consumo e às necessidades que são criadas por ela.
Para completar o quebra-cabeça, o fotógrafo venezuelano Ricardo Alcaide exibe duas séries. A primeira investiga as máscaras sociais que cada um usa para sobreviver na selva de concreto. Para isso, Transeuntes retrata figuras mascaradas que posam para suas lentes nas ruas paulistanas. A segunda é Outdoors, em que, com a manipulação de imagens, Alcaide insere imensos painéis de pêlos e pele humana onde, originalmente, existiam outdoors publicitários. O fotógrafo criou esta séria em 2005, antes da Lei Cidade Limpa.
Para fechar a semana à moda brasileira, nada melhor que festejar. O DJ Tahira é o encarregado de botar os convidados da festa Cheiro do Brasil para dançar. Comandada pelo brasileiro, a festa dá início às comemorações de encerramento do Festival de Cinema de Roma.

A repórter viajou a convite do RomeFilmFest

LINK do Estadão
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15.8.08

“Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.“



Por Alexandre Ignácio Alves

*Manifesto antropófago (1928) Oswald de Andrade.
Dois grandes intelectuais brasileiros pensaram a cultura brasileira como uma cultura de apropriações.
Na saga “Macunaíma”, o poeta, romancista, crítico de arte, musicólogo e ensaísta Mario de Andrade afirma o povo brasileiro, como” um povo sem nenhum caráter”, um povo mestiço, de um país formado por todos os continentes.
Oswald de Andrade escritor do “Manifesto Antropófagico”, nos descreve como sujeitos de uma cultura antropofaga, ou seja, uma cultura de assimilação e apropriação do outro. Mas para ambos, a antropofagia é usada no sentido simbólico. O antropófago não come para alimentar-se mas para apropriar-se de características qualitativas do outro. misturá-las e hibridiza-las, transformando-se assim em algo novo.
São Paulo é uma megalópole antropofágica, que devora sem concessões seus 18 milhões de habitantes que, vindos de todas partes, devoram a cidade com uma voracidade luxuriante. E isto não deixa de multiplicar a rede de interação com outras grandes cidades do país,
No Brasil somos capazes de conviver com a diversidade antropológica de um modo particular. Esta forma acentuada por um certo caos social no convívio é a nossa grande contribuição para o mundo, ou seja, somos capazes de gerar uma sociedade multiétnica e transcultural que advém da apropriação das diversidades.
Somos uma nação multidisciplinar por excelência.
A escolha dos artistas que participam deste contexto se deu pelo viés da apropriação, ou seja, a partir da pluralidade de meios expressivos, da diversidade de pensamentos e origens étnicas dos convidados e de como estes artistas se utilizam destas linguagens para experimentar e ou absorver o outro. E quando algo no outro nos diz respeito é porque já temos internamente algumas reminiscências da nossa semelhança, muitas vezes guardada em toda e aparente diferença, que existe nas coisas.
Há uma projeção, um processo de internalização do outro. Esta pode ser uma chave para a leitura da linguagem arte-cinema que se projeta na obra de Cao Guimarães, Rua de Mão Dupla. Ele dá aos participantes (ou espectadores/ ou ambos?) a oportunidade de experimentar o outro em si mesmo.
Surgindo da dança, mas transpondo seu limite para o corpo-arte, vem a proposta de Carolina Novelleto, "Nós", que experimenta, em si mesma, os vários corpos da metrópole, corpos observados atentamente e nos quais ela percebeu as diversas influências étnicas, sociais e culturais que os moldam.
Na contramão, o venezuelano Ricardo Alcaide subverte a ordem canibal nas séries "transeuntes" e "Outdoors", ele devora e é devorado pela cidade. Sendo ele o único estrangeiro, sofre o incômodo com a cidade de São Paulo, o que o leva a manipular as imagens, criando uma “realidade” inexistente no entorno que a princípio lhe parece estranho.
E na sua instalação "Começo do Fim do Mundo", Daniel Caballero transforma a cidade e suas mazelas em seres atávicos, impiedosos com seus habitantes. O caos urbano é a sua ode, a favela seu reino e o barraco seu castelo.
Bienvenuti Signori in questa realitá paulistana, Babel brasileira, a metrópole que é a própria antropofagia.

* Texto realizado por ocasião da curadoria brasileira da exposição  Metropolis : contenitori di quali contenuti?, GIL, ex casa della Gioventú Italina del Littorio di Trastevere, Roma - 2007.