12.6.12

Do cerrado dos campos de Piratininga: Marcio Harum entrevista Daniel Caballero



MH: A tua formação é resultado direto do teu trabalho com a ilustração, Daniel. Como você explica essa passagem da ilustração ao campo da produção artística na tua trajetória?
DC: Minha formação é decorrente de vários interesses, alguns mais difíceis de associar à minha produção, como, por exemplo, jardinagem. Sempre tive interesse em jardins, e aprendi a desenhar a partir de estudos com plantas.
Muito jovem, conheci o trabalho de alguns dos naturalistas famosos: Rugendas, Frans Post, Debret, Albert Eckhout; estudei muitíssimo as aquarelas da Margareth Mee, por exemplo. Posteriormente, fui trabalhar com ilustração e design, e o que me interessa nesse campo é o registro da memória visual. Pode-se entender bastante do contexto de uma época, apenas observando os seus desenhos e objetos, e isso alimenta meu repertório de possibilidades como artista.
Especificamente neste trabalho para o Paço das Artes, me apropriei do conceito naturalista, para trabalhar com o projeto de uma instalação que conta com desenhos que partem dessa carga de informação, ao debater assuntos que não estão contidos na ilustração botânica, ou científica.

MH: À partir de percursos urbanos, para o teu trabalho no Paço das Artes, surgem desenhos e mais desenhos sob o teu olhar bem particular, e formam um conjunto de vistas absolutamente irreconhecíveis e corriqueiras da cidade. Como se dão essas andanças?
DC: Procuro exotismo no cotidiano. Tento usar estratégias para sair do que é familiar. Mudo meus horários em relação aos de costume para observar a cidade, sem participar. Saio, vou até algum ponto da cidade e fico parado como se estivesse numa pescaria, esperando 'fisgar" algo fora da ordem. Minhas rotas habituais, ocupam uma área reduzida da cidade, e me desloco para locais que não conheço tentando me perder. Essas tentativas de aventura, de deriva e de buscar novidades, apesar de divertidas, se demonstram não essenciais.
No fim, todos os espaços da cidade, do centro até a periferia, são igualmente recortados e destinados a alguma finalidade pelo trajeto.
Dentro desses espaços, existem elementos ou situações sobrepostas ao acaso, coladas na paisagem. São presenças invisíveis e atuantes na rotina diária da populacão local. Então por fim, acabo explorando o meu entorno, e uso meu olhar para aproveitar o que se apresenta à minha frente.

MH: Esmiúce por favor o teu processo de olhar o entorno, o da edição de pontos da cidade que vão merecer a captura de imagens e o natural desdobramento com a realização dos desenhos.
DC: Meu trabalho surge do interesse em entender como ocupamos os espaços da cidade. O momento no qual, por exemplo, determinamos como queremos as paredes das nossas casas ou como percebemos como as ruas se transformam, se desenvolvem.
Comecei o processo de observação para esta pesquisa, aonde descobri diferentes hierarquias entre os elementos da paisagem. Como aparentemente nada é construído sem motivo, estão presentes em meu trabalho esses mesmos elementos, que são construídos com um propósito claro na sua função e importância para a vida coletiva.
Mas existem outros elementos que são subprodutos da movimentação da cidade por força da flutuação financeira do mercado imobiliário, ou resultantes de sobreposições de idéias antagônicas. Muitos desses elementos acabam por se perder, não tornam-se uma coisa nem outra, formam uma nova espécie, ou categoria de objeto disfuncional.
No desenvolvimento do ambiente artificial, as áreas de vegetação em geral são tratadas como elementos secundários da paisagem, talvez por que de certo modo a cidade não precise mais dessas áreas para desenvolver-se.
Como as pessoas que vivem nas cidades precisam dessas áreas, a natureza há de ser construída. Utilizo os desenhos para registrar objetos e esculturas que sintetizam sequências de acontecimentos, e com isso investigo a diferença entre o que é natural (algo independente da intervenção humana) e o que é a natureza construída ou seja, o que passa a existir para atender as nossas necessidades urbanas.

MH: No teu trabalho há uma perspectiva histórica relutante no traço observatório do desenho de natureza (Debret, Rugendas, e mais), que começa a surgir discretamente. Como você define este acontecimento em função da tua produção artística recente depois de longa experiência com a ilustração?
DC: Veja, os desenhos surgiram como uma pratica autêntica de entendimento do espaço urbano. Sem trocadilhos, mas foi um processo "natural" e não um acontecimento, sempre uso desenho no meu processo de criação. Procurei fazer o mesmo que os viajantes naturalistas, mas em um ambiente artificial e sem as constantes e longas viagens.
O ato contém propositadamente ironia e subversão, desrespeito em perspectiva o colonialista arrogante e seu olhar europeu, que se valia de artistas para sua metodologia de domínio na coleta sistemática de informações. Hoje, sabemos pelo distanciamento histórico como aquele olhar era pouco científico e sim mercantilista, seguramente.
Portanto, trata-se de um método com verniz de propriedade, mas comprovadamente falho e que o utilizo para mostrar coisas e atos falhos. Os meus desenhos respeitam os procedimentos do naturalismo, mas emprestam uma memória visual de época hibridizada, que denuncia tratar-se de desenhos atuais.

MH: A que propósitos servem o teu trabalho para a edição e agrupamento de imagens e desenhos? Como você chegou a necessidade de ter uma instalação e não simplesmente uma série de desenhos como projeto de exposição para a Temporada do Paço? Não te parece que pode estar aí incluído algum efeito colateral da cultura de editais? No que realmente se baseia este teu projeto instalativo?
DC: Acho que já respondi essas indagações e não quero ser redundante. Digo que sou um artista que pensa prioritariamente a instalação, muitas vezes em site-specific. De fato os desenhos podem ser autonômos, mas já os havia experimentado assim e tinha outras idéias em mente.
Se pensarmos talvez o conjunto como um gabinete de curiosidades, onde as esculturas, as amostras e os desenhos façam parte de um mesmo tema único de estudo, se consegue visualizar mais facilmente a proposição. Sinceramente, não entendo muito de editais, apesar de já ter me inscrito em alguns, só levei a sério mesmo este do Paço, e foi de tanto alguns amigos artistas insistirem comigo de sua importância. Achava a tarefa chata, ter que preencher formulários e documentos, mas estou começando a pensar que é uma boa opção de ganhar visibilidade, sei lá…estou tomando gosto.

MH: Aonde você assume que está a imaginação de Viagem Pitoresca através do espaço ao redor da minha casa, título do teu projeto para a Temporada do Paço das Artes em 2012?
DC: Realizar o trabalho tendo como o ponto de partida a vivência dos procedimentos dos artistas naturalistas de séculos atrás na atualidade da experiência da complexa malha das dificuldadades ubanísticas da São Paulo dos dias de hoje, já contém uma boa dose de imaginação por si só. É quase como brincar de Tim Tim, e o resto é apenas consequência.