3.3.13

Projetando para o colapso, projetando para a ausência




Por Mario Gioia

Nas cercanias da tranquila vila onde mora, Daniel Caballero, diariamente, tem visões do pós-apocalipse. Uma paisagem que se desenhava com sobrados geminados, quintais de paisagismos de gosto duvidoso, ambientes domésticos com fartos sons e odores, tudo isso cai, sem volta, vira pó. Os escombros cinza-avermelhados, espécie de amálgama do concreto e dos tijolos que anteriormente erigiam construções unifamiliares, dominam o território. Quarteirões dos bairros contíguos da Vila Madalena, Vila Anglo, Pompeia e Vila Beatriz deixam hoje transparecer rastros de paredes de cozinhas e lavanderias marcadas por ladrilhos brancos, diminutos pés de árvores que não tiveram tempo para prosperar, pedras de ardósia atualmente só em fragmentos irregulares, às quais outrora tinham função de ornar fachadas ou fazer parte de pisos de entrada. Uma atmosfera que mistura no mesmo plano Walking Dead, Mad Max e São Paulo S/A.
O artista paulistano se apropria, então, da árida paisagem para traçar caminhos de risco, com alta carga poética. Partilhando das andanças subversivas de nomes-chave da contemporaneidade, como Francis Alÿs, Caballero cria obras de difícil rotulagem, como o projeto que realizou especialmente para o Paço das Artes, Viagem Pitoresca Através do Espaço ao Redor da Minha Casa (2012). A instalação tinha pedaços de grama compactada em disposição elevada, estruturas que lembram andaimes com adesivações beges muito banais, desenhos (numerosos) realizados com o virtuosismo de um artista viajante, só que agora a catalogar e registrar tocos de árvores, troncos pintados de branco para resistir a pragas, ervas daninhas, mato. Como desdobramento do trabalho tridimensional, o artista exibe agora no corredor da galeria Central a série Lotes (2013), que funciona como uma panorâmica de desenhos marcados pela cor da terra e por uma quase abstração dos volumes e das formas do... mato. Melhor dizendo, do cerrado.
Vegetação com importância sempre colocada em xeque _ a constituição rasteira, irregular e pouco vistosa ajuda em tal depreciação, ao contrário da densidade verdejante da Mata Atlântica, por exemplo _, o cerrado, de um modo quase milagroso, ainda resiste em pontos muito específicos da Grande São Paulo. Em Franco da Rocha, nas bordas do antigo complexo psiquiátrico do Juquery, ainda florescem espécies como a lantana, o tarumã, a orelha-de-onça. No que deve ser a praça dos Museus, na Cidade Universitária, um pedaço original dos antigos Campos de Piratininga foi salvo à beira da sua completa desaparição. Aos fundos de um estacionamento de hipermercado no Butantã, nacos desse ‘matagal’ tão rico para a fauna local sobrevivem, cercados por metros de arame e grades. E Caballero ainda mapeia e percorre outras porções desses biomas tão particulares.
“Se as práticas errantes são hoje importantes a ponto de fornecer à arte um modelo de composição, isso ocorre em resposta à evolução das relações entre o indivíduo e a coletividade na cidade contemporânea”1, explica o teórico francês Nicolas Bourriaud. Assim, a obra-percurso de Caballero é indissociável do que caracteriza essa nova urbe, de relações conflituosas entre o público e o privado e marcada por regiões de difícil conceituação _ não lugares, zonas-fantasma, guetos, locais sitiados. A eleição do cerrado é exemplar na singularidade da poética do artista paulistano. A partir de experiências de grande fisicalidade nesses sistemas raros _ Caballero adentra por vezes clandestinamente tais lócus, com habilidade, mas sem a truculência de um antigo bandeirante, e, sim, com a atitude de um artista; nesse sentido, Smithson é um farol, quando tragado pelo pântano no crucial filme Swamp (1969) _, ele renova os procedimentos de expoentes da land art, da earth art e da environmental art. Certamente o descontrole de tais vivências ativa processos que, em âmbito visual, podem gerar peças intrigantes _ no caso, os desenhos feitos com acrílica e terra da série Lotes.
Desenho Rápido Enquanto a Paisagem Desaparece, título da individual, também ecoa capítulos da história da arte do Brasil, em especial o dos desenhos e das gravuras de Evandro Carlos Jardim. Em projetos como Balada da Cidade de São Paulo (1991) e A Noite, No Quarto de Cima, O Cruzeiro do Sul,... (1973-2010), Jardim reúne fragmentos, rascunhos, esboços e figuras incompletas que hoje ganhariam uma denominação de obra processual, sketchbook de artista etc. Estruturas de alta tensão, cavalos em queda, chaminés, barracos de madeira, visadas do pico do Jaraguá, isso tudo resultou em um conjunto de trabalhos de pujante força criado a partir do prosaico, do entorno, do trajeto. Agora, Caballero também repete a melancolia de Jardim, mas de uma maneira mais ruidosa, quase a nos espetar, incomodar. Gordon Matta-Clark (1943-1978) também ecoa, por meio de desenhos (parte menosprezada da sua produção), como Energy Tree (1970), e filmes e fotografias do underground da capital francesa, como Sous-Sols de Paris: Bones and Bottles (1977). “Completude por meio da remoção/ Completude por meio do colapso/ Completude no vazio”, escreveu o artista norte-americano, cuja aproximação com a poética rugosa, móvel, barulhenta e cromaticamente pouco expressiva de Daniel Caballero não pode ser omitida.

* Texto realizado por ocasião da curadoria da exposição Desenho rápido enquanto a paisagem desaparece, de Daniel Caballero, na Galeria Central, São Paulo - 2013.