27.8.12

Forquilha para terrenos baldios




Por Marcio Harum

Por entre os infinitos do mundo que é São Paulo, acumulam-se sequências e inconsequência de visões em relação a um pequeno microcosmo vivido, percorrido e reconhecido com intenções de aventura e pesquisa botânica em Viagem Pitoresca através do espaço ao redor da minha casa, projeto de Daniel Caballero para a Temporada de Projetos do Paço das Artes 2012.
Em seus field trips habituais de fotografia/ desenho de observação e classificação, o artista explora os arrabaldes de sua vizinhança, buscando aperfeiçoar um enquadramento paisagístico urbano através de técnicas de caráter seco, sem expressividade aparente, mas circunscrito a um forte senso perceptivo de ambientes. Esse trabalho é primeiramente apresentado aqui como um conjunto originariamente agrupado pela utilização combinada de canetas Bic, canetinhas e nanquim.
A presença de sentido, em sua mais recente produção artística, tenta descrever e catalogar as amostras deslocadas da flora in situ pela cidade afora, ao querer fazer aproximá-lo talvez do ofício de um mateiro ancestral de Rugendas, mas sem o facão para abrir picadas na mata. Em seu estudo, Caballero incorpora e reproduz múltiplas imagens de folhagens revoltas, arbustos rasteiros e relva daninha com a perfeição e a limpeza do traço de quem realmente tem iniciado suas práticas em meio ao universo sistematicamente profissionalizado da ilustração.
A estrutura de fundo para esta coleção de desenhos conta com inúmeras ocorrências comuns das cidades em qualquer dimensão; são evidências de territórios que desaparecem e se renovam em constante devoração semi-arqueológica, delineadas a partir do imaginário individual ou do esquecimento que afeta a vida coletiva. A instalação de Caballero exerce um poder de indução e nos indaga: o que soa atraentemente mais natural? A falta de espaços públicos, o cimento, a especulação imobiliária ou a árvore? O poste, a grama (campo construído) ou o urbanismo sem planejamento? Um terreno baldio abandonado e invisível ou o regulador mercado financeiro?
Há uma aproximação espontânea deste trabalho com o conhecimento de alguns procedimentos técnicos de jardinagem e o cuidado com as plantas. De outro lado nos faz rememorar os registros notáveis dos históricos naturalistas que irromperam nos interiores do Brasil, tal qual Florence, Langsdorff, Spix e Martius, e mais. A instância posta nessa mostra é a da abertura de um debate de assuntos que não estão contidos na ilustração ou na academia de estudos botânicos ou científicos.
Uma dada constatação das provas bastante interessantes que a sua investigação confirma na região de “Campos de Piratininga”(São Paulo); é que sendo o cerrado uma vegetação pouco exuberante, de capim alto e arbustos espinhentos, aos olhos leigos essas características realistas de descrição formam o que deve parecer ser um terreno baldio. Em um dos pedaços de chão de terra fragmentado atrás de um hipermercado pericêntrico, Caballero descobre ao invadir o cercado das empreiteiras da construção civil um “terrenico” de vegetação única, onde habitam espécies endêmicas na cidade em que mapeia. Essas mesmas áreas, que parecem ser apenas demarcadas para a possível transformação do capim em arbusto, do arbusto em árvore, da árvore em bosques, faz com que os enxerguemos como terrenos desocupados e não como remanescentes de ecosistemas anteriores. Vivemos o tempo do conceito dos valores invertidos.
Recordar que uma árvore ou os gramados da cidade não tem nada a ver necessariamente com a natureza, pode gerar conflitos com algumas das noções e raciocínios por parte dos militantes do ambientalismo. É inegável a dificuldade de assimilação do assunto por aqueles que compreendem mal os conceitos frágeis sobre tal ordem de mapeamento artístico e urbano. Se o bioma do cerrado, que se encontra na USP por exemplo, passou tanto tempo despercebido, é simples de imaginar a recepção de aspectos similares por dirigentes no poder privado e público que são absolutamente leigos ou contrários quanto aos temas de conservação do patrimônio público geográfico, histórico e cultural. O trabalho de Caballero nos dá acesso a área mais verdadeiramente natural dentro de uma cidade qualquer, com direito a uma viagem no tempo a pessoal cidade interna, ao vermos que as suas redescobertas prezam paisagens e espécies extintas. Com certeza faz uma grande falta nessa mostra o Guia de Terrenos Baldios da Cidade de São Paulo, da artista espanhola Lara Almárcegui, que realizou tal pesquisa e trabalho artístico durante os meses de sua residência artística durante os preparativos da 27a Bienal de São Paulo, em 2006.
Viagem Pitoresca através do espaço ao redor da minha casa, nos deixa à sombra do dilema e metáfora de subexistir em meio a tanta falta de rés do chão: nos resta enfiar uma caixa de concreto na cabeça como forma de prosseguir a vida sem interrupções (alusão a peça diorama de Daniel Caballero, feita de papelão e exibida na vitrine do MASP a convite de Regina Silveira na estação de metrô Trianon-MASP no 1o trimestre de 2012) ou então simplesmente montar em um tapete de grama voadora rumo ao reencontro com a natureza perdida.