29.5.15

Tudo que vejo é meu!


Por Andrés Hernández, São Paulo 2015.


Você já subiu a ladeira de uma montanha? Por qual dos lados da montanha? Tem certeza? Como você decide qual é o lado ideal?
Esses são, entre outros, os questionamentos levantados por Daniel Caballero na exposição Tudo o que vejo é meu, na sede do Museu de Arte de Ribeirão Preto (MARP), mostra que tem como precedentes Viagem pitoresca no espaço arredor da minha casa, instalação no Paço das Artes, em 2012, e a exposição Terra non descoperta, na Galeria Virgilio, em cartaz até 4 de junho de 2015, ambas em São Paulo. 
O artista classifica as montanhas em três tipos:
A do cerrado, construída com plantas do cerrado. Em exposição na Galeria Virgilio; 
A das espécies invasoras como capim africano, milho transgênico e plantas abandonadas pela floricultura, que invadem o espaço do que era originário. Plantas catadas na rua e em espaços públicos da cidade de Ribeirão Preto, na exposição Tudo o que vejo é meu, aqui no MARP a partir de 29 de maio; 
E a do ambiente tropical: orquídeas e plantas originárias da Índia que manifestem o exotismo no cotidiano. Ainda como projeto a ser executado.
As montanhas dos três tipos estruturam-se como quebra-cabeças arqueológicos, imaginando reconstruir o bioma cuja origem plástica começa na coleta sistemática que o artista faz de sementes, mudas de plantas e pedaços de galhos que depois planta no seu jardim ou nas instalações. Assim, Caballero idealiza a construção das montanhas não como uma reconstituição fiel, mas imaginária, pois nas montanhas construídas o artista nos coloca na situação de decidir qual dos lados escalaremos presencial e individualmente e/ou através de referências e questionamentos sociopolíticos a partir de representações estéticas.
Um paralelo pode ser feito com o projeto visionário do arquiteto francês Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc (1814-1879), um dos primeiros teóricos da preservação do patrimônio histórico e considerado um precursor teórico da arquitetura moderna. Para restaurar o Mont Blanc devolvendo-lhe sua grandiosidade original, ele projetou uma montanha a partir de uma montanha, e o mais extraordinário: pensou em transformar o cume da montanha em obra de arte. Uma nostalgia utópica para um futuro luminoso. Uma fantasia que combina ciência e sonhos, românticos delírios originados de talento e conhecimentos. Caballero sugere, também, construir uma montanha ideal entre a Virgilio e o MARP, mas ela estaria direcionada, sobretudo, à reflexão a partir de um raciocínio plástico. Nessa concepção metafórica, o artista nos alerta também para a expansão do cruel tratamento dado à natureza, incluindo a fragilidade das montanhas perante sua própria imobilidade e a mobilidade destrutiva que o homem lhes dá quando constituem uma fronteira para a expansão da modernidade. Caballero explora igualmente as relações entre a arquitetura e a paisagem destinada a interferir, redefinir e modificar os lugares previamente regulados pelas atuações arquitetônicas, além daquelas marcadas por um caráter pontual, crítico e efêmero associado ao enfrentamento com a ordem política, social, institucional e midiática. Narra-se a relação das montanhas entre si e com quem as vê. 
Se Viollet-le-Duc considerava o Mont Blanc uma ruína da qual era possível recuperar a forma, tal como na restauração de um monumento, Caballero dá forma a sua montanha a partir de ruínas, bem como das ideias de preservação e restauração de monumentos em processo: os resultados da ação do tempo e do homem sobre a natureza. 

Essa mobilidade, sugerida e imaginada para um entorno aproximado de 300 km de distância (entre São Paulo e Ribeirão), estabelece, ao mesmo tempo, um limite imensurável onde se insere a subjetividade do ser humano a partir dos elementos que cada um dos lados da montanha pode delimitar. Quanto há de movimento interno? Que tipo(s) de movimento(s) acontece(m) entre as montanhas? O que seria essa paisagem intermediária? O começo da ladeira em cada lado (São Paulo e Ribeirão)? O lado de lá pode ser ao mesmo tempo o de cá, e vice-versa: um movimento geral. O artista provoca, assim, uma situação sensorial de reconhecimento espacial e temporal no pensamento imediato do espectador. Constrói um monumento imaginário à natureza feito pela visão e experiência individual. Cada indivíduo imagina o espaço e a natureza sem nunca se ver nem prever o fim! Mas isso é impossível. Trata-se de um monumento na escala humana. 
Nesse espaço imaginado entre montanhas, inclui-se a discussão sobre a avaliação das formas para entender o legado dos índios, o respeito a sua cultura ancestral, sem aquilo de “Vamos salvá-los!”. Salvá-los de nós mesmos, não? Um alerta ao fato, por exemplo, de que os materiais que os índios utilizam tradicionalmente já são escassos ou não existem nas reservas: o sapé, que é utilizado na construção   de telhados, está extinto, tem que ser trazido de outros lugares. As reservas demarcadas viram quase zoológicos humanos.
Caballero delata também a guerra invisível a que o homem induz a natureza, por exemplo, o capim que queima e ressuscita rápido e se sobrepõe ao lugar das plantas nativas, numa guerra silenciosa. A transformação da paisagem em outra paisagem. E questiona: como reconstituiremos as reservas florestais?
Na exposição, além do caudal de relações subjetivas particulares que sugere, o artista nos provê informações que ajudam a reforçar as sensações, e nos conecta com acontecimentos visuais possíveis entre as montanhas por meio do vídeo e das amostras de terra. É uma conexão com histórias distantes e com o desconhecido.



O vídeo Tudo o que vejo é meu, 8’, que dá título à exposição, foi produzido a partir do percurso do artista pela chapada dos Veadeiros, em Goiás, e sugere que essa mobilidade intermediária seja imaginada. A terra cortada com a paisagem de fundo, o brilho do céu e os contrastes do tudo vermelho ou vermelho-preto-e-branco fazem uma conjugação da paisagem original no plano de fundo com o real, resultado da mão do homem, num primeiro plano que gera uma cartografia cromática mutante. É um autocontraste estético que se acentua com as frases inseridas pelo artista, intensificadoras dessas relações contraditórias. Por exemplo, “Minhas pegadas escrevem a terra”. São caminhos que vão sendo segmentados, onde o que resta são  corredores ecológicos. Relação de escala e tempo. Não percebemos o espaço e como isso muda. A tese e a antítese. Se, para os colonizadores, o convívio constante com o maravilhoso de certa forma habilitou o olhar dos portugueses a enfrentar sem surpresas a possibilidade do Paraíso na Terra, Caballero nos apresenta aqui um manifesto estético e crítico contemporâneo de valorização da natureza segundo a percepção de uma realidade social por meio da cultura e daqueles que decidem sua sorte. Esse manifesto é organizado em função da lógica de uma situação cultural, um campo expandido regido pela condição do homem em seu tempo.
Os elementos alegóricos utilizados por Caballero impugnam todas as possíveis alusões a referências representativas e, por conseguinte, a sua natureza significativa. Assim, o artista faz com que a arte continue funcionando como linguagem. Dos cortes na terra e na natureza e do percurso mostrado no vídeo brotam as amostras catalogadas de terra, intituladas Terra Firme que têm o precedente de Como escolher uma boa pedra ?, uma catalogação seriada de pedras – por exemplo, P.01. Na exposição, Caballero apresenta as amostras de terra em Lotes. Catalogados, cada lote contém terra de um lugar diferente. Exemplos: L01503, L41847. Lotes que singularizam a pluralidade de possibilidades nesses deslocamentos perceptivos e polêmicos.


A proposta pretende provocar sensações a partir de um movimento espacial, atemporal e imaginado, uma realidade inventada. O espaço representado partir do espaço vivido associado às atividades cotidianas do homem, reunindo traços que confiram novas características fisionômicas a um lugar. Caballero formata uma cartografia de planos na articulação entre a representação no espaço expositivo e a leitura crítica do espaço visualmente descrito. Uma geografia imaginária a ser decorada como um dos primeiros mapas do Brasil, publicado em 1556: o Atlas delle navigazione e viaggi, de Giovanni Battista Ramusio, que descreve a viagem do piloto francês Jean Parmentier à costa brasileira. O Atlas talvez contenha o primeiro mapa do Brasil mostrado individualmente, ainda que de forma imprecisa. A Terra non descoperta foi representada por montanhas, com a fantasiosa indicação dos rios Amazonas e da Prata nascendo num vulcão ativo, em plena selva amazônica. 
A impossibilidade de dimensionar o tamanho da montanha (que tem dimensões iniciais 200 x 350 x 250 cm, variáveis porque as plantas crescerão), por causa das transformações que o microssistema gerará durante o período da exposição, manifesta o interesse do artista em transgredir a utilização dos espaços expositivos. É uma necessidade de revolta como princípio constitutivo da arte, mesmo princípio que determinou o surgimento de um tipo de arte afastado do viciado circuito comercial, propondo aceder ao domínio do público através do estabelecimento de uma conexão a-direcional entre a cidade, o público e o espaço expositivo. Inserem-se aqui o vídeo e as amostras de terra.
Além das dimensões físicas do projeto, é importante destacar que se trata de um manifesto plástico relativo ao registro de um processo efêmero em transformação material e subjetiva como meio para divulgar uma sensibilidade contemporânea na relação com a natureza.
O artista propõe a renovação e o aperfeiçoamento da percepção, estruturando espaços possíveis para mobilizar e desenvolver o pensamento ao incentivar ao espectador a envolver-se no ato criador, num fluxo midiático de referências cotidianas transformadas em obra de arte – acentuando, assim, a diferença no modo com que reagimos esteticamente à proposta inovadora. Propõe-se, na minha opinião, diluir um único ponto de vista numa estrutura aberta à colaboração (artista/espectador = espectador), num campo ilimitado de interpretações , alternativas e intervenções. 
Assim, a proposta de Caballero para o MARP manifesta seu compromisso com a renovação e discussão da arte no tempo atual e coloca sua produção em concomitância com o posicionamento de Piero Manzoni (1933-1966): “[...] Com o surgimento de novas condições, a proposição de novos problemas, comporta, com a necessidade de novas soluções , também novos métodos e novas medidas; não se pode sair do chão correndo ou saltando; asas são necessárias; as modificações não bastam; a transformação deve ser integral”. 


* Texto realizado por ocasião da curadoria da exposição Tudo que vejo é meu, de Daniel Caballero, no MARP, Museu de Arte de Ribeirão Preto - 2015.


26.5.15

Visitas importantes



Quarta feira, 20 de Maio, recebi na minha exposição na Galeria Virgilio, visitas muito importantes.
Estudantes de quarto e quinto ano do ensino fundamental1, e sexto, oitavo e nono ano do ensino fundamental 2, da escola EMEF Pedro Teixeira que fica na Vila Santana, São Miguel Paulista, na zona Leste da cidade.







7.5.15

Individual, Terra non Descoperta

Por Douglas de Freitas, São Paulo 2015

É natural que com o passar do tempo a paisagem vá se alterando. Esse processo não é exclusivamente resultado da ação do homem, desde que o mundo é mundo, processos químicos, e de sobrevivência das espécies, acarretam na mudança da paisagem. Foi apenas nos últimos séculos que a ação do homem veio de fato ter impacto sobre a paisagem, e a noção da escala desse impacto chegou apenas nas últimas décadas, com o avanço da tecnologia, e a possibilidade de observar a terra a partir de outra escala, a aérea, dos voos e dos satélites. 
Nos últimos anos Daniel Caballero voltou sua pesquisa para os extintos Campos de Piratininga, tipo de vegetação característica do Cerrado Paulista, que tinha presença intensa na cidade de São Paulo. Seu interesse veio de trabalhos anteriores, onde o artista registrava a coexistência entre natureza e ação do homem, ou natureza e construção humana. Deste processo surgiu o interesse em saber que espécies eram aquelas, que se embrenham no concreto e resistem. 
Assim nasce a exposição “Terra non descoperta”, título emprestado do primeiro mapa que mostra o Brasil individualmente que se tem notícia, realizado por Giovanni Ramusio e publicado em 1556 em Veneza, onde um território impreciso é retratado junto a monstros marítimos, e o rio Amazonas nascendo de um vulcão ativo. Assim como no mapa, realidade constatada e construção poética se misturam nos trabalhos do artista. Na entrada da exposição o artista edifica a base de uma montanha seccionada. A vegetação que a constituí são exemplares característicos do Cerrado Paulistano, colhidos pelo artista em sua maiorias em espaços urbanos, reconstruindo assim uma imagem ficcional do que seria a paisagem intocada da cidade de São Paulo.

O trabalho se concretiza em sua integridade máxima dia 29 de maio, com a construção da outra ponta em secção dessa montanha monumental invisível dentro do Museu de Arte de Ribeirão Preto. Lá a montanha chega com exemplares colhidos da região, como se ao percorrer a distancia monumental de mais de 300 km, a montanha também viajasse no tempo, saísse de um estado intocado de 500 anos atrás para chegar em Ribeirão Preto como a paisagem contemporânea. 



Na série de desenhos e pinturas de grande formatos presentes na exposição, os registros precisos da ação de resistência da natureza à cidade contemporânea dão lugar à construção de paisagens densas, construídas sobre outras paisagens, entre detalhes de plantas, plantas arquitetônicas e escritos do artista. Nesses trabalhos varias técnicas e estratégias são traçadas e sobrepostas, em um construir e apagar para então construir novamente, como nas paisagens das cidades. Ao mesmo tempo em que são caóticos, esses trabalhos ainda trazem algo de um estado meditativo de contemplação, como nas pinturas de Alberto da Veiga Guignard, ou nas pinturas orientais que Guignard tanto reverenciava. Junto as pinturas aprecem uma série de desenhos, fotos e vídeos, que se articulam para dar conta das ações do artista sobre essa paisagem que ele investiga. Aqui o registro volta a aparecer no trabalho, e reaparece de diversas maneiras, com liberdade de expressão, ao rigor realista das gravuras e mapas que registram expedições de descobrimento e desbravamento, ou ainda como estudo de botânica de espécies encontradas na cidade, tudo posto como estudo do fazer do desenho, apresentados como insígnias dos achados do artista, e mostruário de seu apuro técnico.
Se em “Viagem pitoresca através do espaço ao redor da minha casa” Daniel Caballero propõe registro de sobreposições entre cidade e natureza dentro da escala do seu cotidiano, “Terra non descoperta” tem outra escala. A escala continua a do corpo, a corpo do artista, a do nosso corpo, mas não é simplesmente um registro poético do cotidiano. Aqui o que sai da escala do presencial é imaginativo, é ficção construída pelo artista, e se desdobra em outra escala de tempo e espaço. Tudo aqui é paisagem reconstruída dentro do ideal romântico de paisagem, é a natureza tentando vencendo o concreto, se infiltrando e retomando seu lugar, num exercício de se deixar apagar, para depois voltar a construir. 
1 Exposição realizada em 2012 no Paço das Artes – SP, como parte da Temporada de Projetos

* Texto realizado por ocasião da curadoria da exposição Terra non Descoperta, de Daniel Caballero, na Galeria Virgilio, São Paulo - 2015.







“Sob desígnio e suspeita, o desenho entra na paisagem e sedentariza-se nas fachadas do 888, rua d.joão IV…”Porto

 Por Maria de Fátima Lambert, Dezembro de 2014 á Abril 2015.

Esta paisagem é dinâmica. Preocupa-me a natureza do solo, por isso me imponho certa unidade de flora e fauna, uma ligação mineral, as articulações meteorológicas. Mas a paisagem move-se por dentro e por fora, encaminha-se do dia para a noite, vai de estação para estação, respira e é vulnerável. Ameaça-a o próprio fim de paisagem. Pela ameaça e vulnerabilidade é que ela é viva. E é também uma coisa do imaginário, porque uma paisagem brota do seu mesmo mito de paisagem. Aquilo que lhe firma a existência situa-se nas condições do desejo: o movimento entre nascença e morte. A tensão criada pela ameaça destruidora afiança-lhe a vitalidade. A árvore da Carne.  
Herberto Hélder, “(guião)” [“(script)”] 











1 - Sob desígnio e suspeita da paisagem

…na senda de Bernardo Soares, eu poderia dizer que não acredito na paisagem. Mentira. Também que a paisagem é uma mentira inventada para colmatar lacunas, intervalos de existência. Se assim fosse, a respiração poderia emanar e ser fragmento de árvores, rios, nuvens ou penhascos; também, plasmar-se em parcelas de muros em derrocada, fachadas carecendo ser acariciadas, escarpas e barrancos em desequilíbrio.
Filosofia da paisagem e iconografia da utopia são termos que emergem do projeto de pintura das 2 fachadas da rua d. João IV, que se desprendem no desenho concebido por Daniel Caballero, que se evidenciam na contemplação do transeunte disposto a ver. Nunca tanto como agora se considera a estética como campo alargado para pensar, sentir e conhecer., supondo divergências e consonâncias. Assim mesmo, a estética da paisagem é necessariamente plural pois o conceito se "ramifica", congregando conhecimentos que procedem de diferentes disciplinas. 
No pensamento ocidental, a história do tema e género da paisagem é abordado sob múltiplos aspetos, metodologias e exigindo contextos científicos, culturais, artísticos. Várias disciplinas concorrem, portanto, para o maior rigor, sistematização e ampliação de reflexões, argumentos e interpretações sobre/d[a] paisagem. 
A paisagem como invenção é, por vezes, assimilada ou confundida com a natureza, e erradamente contrastada com os conceitos, a título de exemplo, de cidade, de urbano…
Exatamente neste prisma há a ponderar a intenção, a missão e a concretização de obra que Daniel Caballero empreendeu e desenvolve.
A paisagem, na pintura e na fotografia, tanto quanto no vídeo ou cinema, é figurada e povoada por seres vegetais, animais – reais e híbridos – que se repetem ou desaparecem. A paisagem é efetivamente uma decisão humana, suscetível de ser recriada, renascida todas as vezes que o mundo a queira replicar. Na realidade, a razão de replicar é um ato constitutivo, gerador de singularidade, nunca de repetição no sentido constritor do termo. 
A paisagem nunca pode ser a mesma, nem tampouco “parecida” como fechamento e cópia, pois nem o tempo cronológico, nem o meteorológico são repetíveis. Aquilo que se vê nunca é o mesmo, o que acontece também com as pessoas que se mudam a si mesmas, de formas impercetíveis mas certas e irrevogáveis. 
A paisagem não se esgotou nas formatações convencionais, nas modalidades estereotipadas ou em recorrências. 
A paisagem reativa-se, a e em si mesma, mediante atualizações irreversíveis que ganham território na obra de artistas, cuja relevância é inequívoca. Estas considerações aplicam-se à argumentação temática sobre os elementos elencados na paisagem, por exemplo, o mar, a montanha, a charneca (ou arquitetura, os traçados urbanísticos…) como paisagem e, sobretudo, como os elementos na sua qualidade de substância, ideia e intencionalidade. 

 1- Daniel Caballero + Estudantes da Licenciatura de Artes Visuais e Tecnologias Artísticas da Escola Superior de Educação, nas Comemorações dos 30 anos do Politécnico do Porto
 2 - In Photomaton & Vox, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, p.140
2 - Sob desígnio e suspeita do desenho*

O desenho, na contemporaneidade e no presente, assumiu uma autonomia, à semelhança do sucedido com disciplinas científicas, como foi caso, da estética relativamente à filosofia. O desenho deixou de ser considerado como fase intermedial ou preparatória para concretizar uma expressão artística finalizadora. Os artistas, ao longo do século XX, “descobriram” o desenho, muito em particular – e na perspetiva emancipatória, depois dos anos 50. Até à atualidade, tal posicionamento e convição vieram a consolidar-se através de algo tão simples quanto a decisão assegurada, fundada na intencionalidade que a move. Não importa tanto o que é o desenho (o que nele se reconhece, o que representa) mas como é. É relevante o “como” do desenhado, mais do “que é” desenhado. Constata-se a lógica, coerência, plano epistemológico que sejam implícitos, determinando a sua própria essência enquanto desenho para afirmar na atualidade (após o desenho dito contemporâneo). Envolve escolhas e deliberações lúcidas por parte dos artistas (como assinalei antes). 
A aproximação física ao desenho, para melhor o observar direciona para uma intimidade que não somente a de quem o realizou. As dimensões e técnicas, tanto quanto os seus conteúdos iconográficos (e semânticos) determinam a colocação, a postura, tudo aquilo que um corpo exige para olhar em detalhe e pormenor ou em distanciamento e perspetiva. O desenho implica, assim, uma ação por parte do espetador, tornando-o protagonista de um ato de conhecimento singularizado. O desenho constrói, por assim dizer, identidades diferenciadas perante uma mesma proposta gráfica. Ou seja, o desenho rege a constituição de uma linha de movimento do corpo do espetador, sua cativação e sequencialidade no ato de ver. [« J’ai découvert que dessiner n’était pas seulement/regarder, mais aussi toucher. » Jan Fabre] Neste sentido, “ver” um desenho será efetivamente “desenhar”, pelo movimento do corpo próprio (do espetador), um ato único de perceção visual.
A atitude de cada um direciona/orienta a apropriação do desenho como pele, conteúdo ou aparência, entre outras supostas “modalidades”, exigindo ocultamento e/ou desvelamento de algo ou alguém, consoante os casos: “The paper becomes what we see through the lines, and yet remains itself.”
O Desenho configurará, portanto, maneiras de olhar, apreender, interpretar e, por outro lado, como acima se referiu, de estar e posicionar perante, promovendo, assim, a diferenciação. Não somente cabe ler os sentidos, significados implícitos no desenvolvimento e registo do desenho – em termos morfológicos – antes haverá que (re)conhecer a linguagem do desenho em si. Pois o desenho, enquanto substância, poderá sofrer transmutações, agregando-se-lhe uma quase organicidade de elementos (versus cosmogonia): “The paper lends itself between the lines to becoming tree, stone, grass, water, cloud.”
O histórico remoto do desenho não invalida, antes vivifica (reitera) a sua pregnância na arte da atualidade, metaforicamente visível na famosa edição Vitamina D… Há que saber ultrapassar as circunstâncias restritivas, os estereótipos implícitos em modelos de ensino artístico, subvertendo-os e antecipando-os.
Sendo que, então: “…Poderia dizer a prática do desenho como principio e fim da obra.” 

*Esta alínea corresponde a uma adaptação do meu texto publicado  in 500 anos de Desenho na Coleção da FBAUP, Porto, MNSR/FBAUP, 2012.
 Margaret Davidson, Contemporary Drawing – key concepts an techniques, N.Y., Watson-Guptill, 2011.



3 - Sob desígnio e suspeita de Tóxico Trópico, desenhos de Daniel Caballero 

Convoquei a paisagem e o desenho, antecipando o que seja uma magnífica “joint venture estética” na obra de Daniel Caballero. Por certo, quer a paisagem, quer o desenho são habitados, neles residindo alteridades e sujeitos únicos. Neste caso – projeto das fachadas – a paisagem entrou dentro do desenho que dele sai para ocupar o seu lugar nas fachadas das casas erguidas como paisagem urbana. Paisagem e desenho protagonizaram uma celebração que durou uma semana e demorará o tempo que persistir. 
A obra de Daniel Caballero coincide numa persistência que desafia as dominantes destrutivas do tempo, anulando as previsões que os hábitos e rotinas instalam, subvertendo-lhes o destino. Os seus desenhos adquirem diferentes proporções e cumprem objetivos múltiplos. Podem subsistir emoldurados ou atravessar vidros e tornar mais opacas as paredes e muros. Alteram o aspeto de ruas, casas, hospitais, estações de metro e outros não-lugares que existam e o provoquem como desenhista e cidadão.
apenas em raros casos surgem autorrepresentações. Quando elas se vêm tomam uma proporção de flânerie que é uma das matérias-primas da sua produção e pensamento. Todavia, a sua pintura desenhada desenvolve-se, partindo da convicção da pessoa humana na cidade. Eis o âmago do seu pensamento estético: plasmar pelo desenho tudo aquilo que visibilize o quanto a cidade é desconstruída, para o humano nela soçobrar incondicionalmente. A figura humana determina a denúncia que subjaz na paisagem, pela sua persistência, ao resistir, subsistir e demorar…assim contrariando quase todos os desígnios de uma excesso de civilização. A figura na paisagem não é epidérmica ou aparencial, está entranhada.
Pedras, arbustos, vegetação espontânea, árvores, escadas, estruturas e fundações de casas, muros, fachadas…trata-se de afirmar uma organização entre elementos da natureza e edificações, arquiteturas concebidas pelo humano em períodos de tempo que se sequencializam na cidade. 
A estética das ruínas, numa visão pouco idílica, é uma das referências incontornáveis ao observar a sua obra. Estamos habituados a pensar sobre o primado desta arqueologia da memória das civilizações, quanto à sua dimensão patrimonial (em distintas tipologias, do edificado ao imaterial humano) e mapeiam-se estilos e afinidades na história da arte ocidental: dos frescos de Pompeia e Herculano, passando pela pintura romanticista e chegando às correntes e modos fotográficos que cercam as ruínas – valências históricas, artísticas, estéticas e poéticas. Assim, a deambulação orientada (quase paradoxo, pois que consignada a um escopo societário que reage contra a invisibilidade do humano na urbe) de Daniel Caballero cumpre a lucidez em traçar caminhos vividos pelo seu corpo que depois transporta no desenho os elementos visionados que são matéria mais gritante do que foi olhado e visto. 
As ruínas de Pompeia e Herculano tornaram-se marco simbólico, pela tragédia que as originou mas, sobretudo, pela complexa panóplia de elementos, artefactos, pinturas e citações antropológicas e culturais que se revelaram. Essas ruínas povoam o nosso imaginário. Pode falar-se de um imaginário das ruínas que organiza a conceção artística de autores, rem ramificações geracionais – enquanto elementos visuais e com uma valência plástico-visual. Também, impregnadas de uma poética, nele fundada, com transposições emblemáticas e ou subjetivistas para as identidades autorais…No caso do desenhista brasileiro, constato tudo isso, acumulado à questão atualizada de saber as circunstâncias do seu tempo – em que vive – pretendendo elucidar e agir sobre as perversões pequenas que incendeiam os direitos e qualidades da vida humana – por si e em sociedade. As ruínas são o topos do humano em Krisis para recuperar o termo husserliano. Que carece derrubar para expandir as “ruínas”… e evitar novas (mas inevitáveis) Pompeias...
Daniel Caballero percorre as ruínas que estão em devir, numa cidade onde a rapidez na mudança das estruturas habitacionais e arquitetura em geral é incontrolável. Pretende fixar nos seus desenhos essa mudança em latência, preservando uma memória anônima de lugares, edifícios e suas gentes em condição de quase invisibilidade…No ano passado, quando da sua intervenção na QuaseGaleria, o artista brasileiro trouxe para dentro da Sala, elementos vistos pelos janelões. Arbustos, muros em derrocada, árvores e terra adquiriram uma outra condição de vidência, deixando-se alastrar pelas paredes, portas, lambris e bandeiras. As camadas de tinta preta e tinta branca sobrepuseram-se criando modulações, volumetria, profundidade e espessura. Ainda coube decidir, no soalho de madeira, três livros de onde emergia tridimensionalidade em hastes de vime cruzadas com fios entrelaçados. 
Neste projeto de “intervenção artística em espaço público do Politécnico do Porto”, em 2015, o seu desenho estabeleceu-se numa rua da cidade, onde o betão também existe mas obviamente não atinge a magnitude, o excesso de urbano que carateriza São Paulo. O homem do concreto – paulista e tudo – por entrepostas condições, propiciou a gestação e emancipou a obra, tendo-a visto partilhada. O desenho possui um valor acrescido ao artístico que é o educacional. Sabe-se que promove a criatividade, gerando condições de uma autoidentificação que se plasma, ao exteriorizar a conciliação do corpo, pensamento em dinamismo vital. 
Se desenhar agudiza a capacidade de olhar para ver, no caso de Daniel Caballero, a necessidade em olhar, rasgando incómodos na paisagem urbana, induz ao desenho. São vasos comunicantes. O desenho é instrumento cognitivo, que possui em si a própria substância, explanando-se em conteúdos que pode importar de plataformas diferenciadas para além de possibilitar o exercício de uma auto-crítica, auto-referencialidade e auto-documentação criativa…Os caminhos do desenho, na atualidade são díspares, iluminando territórios do eu, do outro e dos outros. 
“A estrada corta a planície em linha reta até ao horizonte. Não há nada na paisagem desértica. Apenas o mato rasteiro que cresce no chão do cascalho.”

 4 - John Berger, Twice Drawn – Modern  and contemporary Drawings in context, The Francis Young Tang Teaching Museum and Art Gallery at Skidmore College and Prestel Verlag, Munich, London, N.Y., 2011, p. 182.
5 -  John Berger, Op. Cit, p. 182.
6 -  Paulo Reis, “O Contracto do Desenhista”, texto para a exposição coletiva in Plataforma Revolver, 2008.

4 - Autorias em estado de partilha e efemeridade

"Sim, a obra artística é sempre o resultado de um ter estado em perigo, de ter chegado ao fim numa experiência, aonde já ninguém pode ir mais longe." 
(…)

“Quanto mais se avança nela, a vivência torna-se mais próxima, mais pessoal, mais única, e ao fim, a obra artística é a manifestação necessária, irreprimível, o mais definitiva possível, de tal singularidade…”

Rainer Marie Rilke, "Cartas sobre Cézanne"

O processo empreendido implicava a confrontação entre as definições de autoria do desenho - por Daniel Caballero - e autoria da pintura do desenho [tomado como referência convertendo-se em símile?] por parte dos Estudantes de Artes Visuais da Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto que assumiram o processo de execução (livre). Esta conversa de autorias em consonância desenrolou-se sob auspícios de uma articulação exemplar. Apesar de existir um oceano de permeio e a impossibilidade física de um diálogo presencial, o diálogo flui, cumprindo propósitos metodológicos, artísticos, estéticos e pedagógicos. Não se tratou de estabelecer ou transmitir instruções fechadas para o desempenho, antes se ocuparam todos na partilhar de motivações educacionais para uma e outras sociedades que, por vezes, negligenciam o seu património, memória e futuro, em paralelo e nas diferentes aceções e tipologias: património arquitetónico, património cidade (e urbano), património humano identitário, património natural, património ambiental, património memorial…enfim todos subsumidos e em prol de um património simbólico – coletivo e que, através de uma ação consentânea e de resiliência, congrega os reinos (síncronos) do real e do imaginário. 
Ação conjunta implicou uma cumplicidade testada nos primeiros dias, quando da definição de estratégias e procedimentos; houve que acertar amplitude de gestos e extensão de pinceladas, de modo a que o desenvolvimento de uma pessoa, coincidisse com o traçado da outra. Mediante uma fragmentação do desenho em partes constitutivas, cada pessoa ficou encarregue de cumprir um trecho de desenho, convergindo para o desenho/pintura como todo. A espessura do desenho acumulou-se à densidade desigual da superfície das fachadas. As varandas, umbrais de portas e janelas, as reentrâncias do sótão ou as caleiras serviram de cenários, desacreditados estes elementos como obstáculos. Assim se instituiu uma outra visão da rotina percorrida ou hierática de quem demora a olhar. Pois que as ruínas apossaram-se da pintura, propondo novas derivas que se alongam, sobem nos traços compactos ou na fluidez de linhas volumetrizadas. Afinal, as fachadas em pedra são matéria densa que, apesar do estado de degradação, guardam os motivos refletidos do pensamento do artista brasileiro e das efabulações impulsionadas nos portugueses. 
As fachadas absorveram camadas de tintas sobrepostas ou ladeadas, apresentando uma espessura texturada que perfila o alçado, os contornos em ângulos curvados pela perceção de quem vai circulando na rua, sobe ou desce a calçada. É um desenho pintado e enorme que acompanha os moradores do bairro, surpreendendo-os. 

“Les ruines ne sont pas seulement des bâtiments dégradés, elles participent du paysage rêvé. »

Trata-se de ruínas que desafiam o desmoronamento físico, aplaudindo-o no que possui de fruição estética e des-incómodo de gente indiferente.
Trata-se de um caso de memória, conjugando as razões do individual e do coletivo com as atribuições do imaginário – quer individual, quer coletivo. 
Trata-se de saber localizar-se. Trata-se de ser capaz de vaguear, sem perder a noção do pensamento crítico, encarando o mundo. 
Trata-se de aceder a uma plataforma de conhecimento que é raro pois implica a generosidade mútua e a perseverança de muitos. 
Trata-se de construir na superfície das fachadas, uma volumetria desigual mas uniforme, que ao pintar apenas foi passível de ser vista, à distância. 
Trata-se de um projeto de paisagem reconfortada pela presença de consecuções imprevistas e sonhos resilientes. 
Trata-se de continuar, manter desperta a ação artística, agindo como convictos “operadores estéticos” (parafraseando José Ernesto de Sousa).

7 -  Nelson Brissac Peixoto – Cenários em ruínas, Lisboa, Gradiva, 2010, p.79

8 -  Dominique Fernandez, Ferrante Ferranti et Patrice Alexandre, Imaginaire des Ruines, Paris, Actes Sud, 2009, p.16      

* Texto realizado por ocasião da curadoria da ação conjunta de Daniel Caballero com os estudantes do Politécnico do Porto, na fachada do prédio 888 da R. Don João IV, Porto, Portugal - 2015.                                                              



Processo de construção de paisagem "Tóxico Trópico" com os alunos do Instituto Politécnico do Porto


Com curadoria e coordenação de Prudência Coimbra, Maria de Fátima Lambert e António Fernando Silva, recebi o convite da Escola Superior de Educação, para fazer um trabalho como parte dos eventos que comemoram os 30 anos do Politécnico do Porto.
Combinamos que o trabalho seria feito á distância, partindo de algumas reuniões por Skype com instruções bem simples, e executado por uma equipe de aproximadamente 90 alunos do curso de Artes Visuais. O conceito do trabalho segue o mesmo procedimento da série de paisagens Tóxico Trópico. Á partir de uma série de elementos pré-determinados, como pedras, entulhos, escada, vegetação entre outros, desenvolvo novas composições, formando novas paisagens. A diferença agora é que o desenho seria realizado em um escala gigante na fachada de dois simpáticos edifícios da Rua D. João IV, bem típicos do Porto.
Os alunos, todos equipados, munidos de capacetes, andaimes e coragem para enfrentar a altura, desenvolveram o desenho de forma surpreendentemente organizada e rápida.
Fiquei acompanhando pela internet, a empolgação em resolver o desafio,  e a cada dia o impacto  do desenho na paisagem urbana crescia.

O resultado foi uma intervenção no cotidiano que se relaciona com o entorno tantos dos prédios vizinhos, quanto de um barranco de pedras coincidentemente situado em frente da pintura. Ter feito essa paisagem de elementos do Brasil em um prédio de Portugal precisando de uma boa restauração, trouxe novas camadas de leitura, assim como a própria situação do trabalho coletivo.
Adoraria ter acompanhado o trabalho, a empolgação era nítida nas imagens que recebia nas redes sociais, mas qualquer participação minha na produção teria acabado com a proposta. Nesse caso a distância faz a graca, e fico observando quieto e agradecido, meus novos amigos se apoderando e dando novos significados a esse desenho que já fiz tantas vezes, e que agora não é apenas meu.






Individual, Tóxico Trópico


DANIEL CABALLERO | Tóxico Trópico
INAUGURAÇÃO OPENING 11/02 2015 | 19:00 7h00pm
11/02 2015 - 02/04 2015


CARLOS CARVALHO ARTE CONTEMPORÂNEA
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