30.11.16




Jailton Moreira leu meu livro em estado bruto, e a conversa com ele sempre rende. Numa troca informal de e-mails, escreveu um texto que sintetiza tão bem não apenas o projeto do Cerrado Infinito, mas minha maneira de pensar arte, que pedi se podia colocar na capa fechando o livro.
“Quanto ao projeto Cerrado Infinito penso nele como um ato de resistência utópica. Toda utopia é burra, tem um lado cego. Porém, é impossível fazer um trabalho potente em arte sem uma utopia. Istosignifica que não é mais esperto aquele que consegue colocar as luzes do entendimento sobre todas as zonas possíveis de uma ideia. Ao contrário, é aquele que consegue cercar e deixar latentes suas zonas de sombras e imprecisões. É infinito porque nunca terminará, afinal nenhum cenário morre por inteiro. É infinito porque o trabalho artístico tem algo de Sísifo - um tipo de obrigação que quando aparece e se impõe, se mostra incontornável. É infinito quanto a escala - ele tem bordas imprecisas. É infinito porque o projeto, nunca será concluído mesmo se inacabado ou abandonado, vai continuar reverberando. É infinito porque é processo.”

Meu livro Guia de campo dos Campos de Piratininga ou O que sobrou do cerrado paulistano ou Como fazer seu próprio Cerrado Infinito, abre com este texto preciso do artista, pesquisador e critico Bruno Mendonça, explicando a genealogia de eventos que deram no Cerrado Infinito.

Bruno Mendonça, São Paulo, junho de 2016

Desde o início de sua produção artística, ainda numa fase mais voltada para a linguagem do desenho, e ainda bastante aproximada das artes gráficas e dos quadrinhos, o que fica visível esteticamente em diversos trabalhos como “No Começo era o Verbo”, ou “Carbona”, apenas para citar alguns exemplos, já podemos identificar o interesse do artista Daniel Caballero pela complexa relação entre homem e espaço. 
Posteriormente a esta fase, após um período de aprofundamento em sua formação e pesquisa, o artista passa a espacializar o desenho em trabalhos de instalação nos quais começa a se utilizar de materiais como lixo e entulho, problematizando questões relacionadas à cidade, em trabalhos como “Começo do Fim do Mundo” apresentado no Festival de Cinema de Roma em 2007, assim como a exposição individual “Boas Maneiras: Geófagos Educados não acreditam em Linhas Imaginárias”, realizada na Casa do Olhar em 2009, e “Andando, desenho, linhas imaginárias que preenchem o espaço com percursos Inúteis”, no Paço Municipal de Santo André, no mesmo ano.
Estas instalações e intervenções deste período já revelam também um novo procedimento operado pelo artista, os site-specifics, que surgem desta relação mais analítica de Caballero com o espaço e a paisagem. Isso se torna mais evidente no projeto “Não Pise na Grama ou Arcádia” (2011), realizado no contexto da exposição coletiva “Aluga-se”, em que diversos artistas ocuparam uma casa no bairro de Pinheiros que se encontrava com problemas de locação a fim de problematizar o início da onda de especulação imobiliária da cidade de São Paulo. 
Poderíamos afirmar que é neste momento do desdobramento da pesquisa do artista, mais especificamente em 2012, durante a exposição “Viagem pitoresca através do espaço da minha Casa” realizada no Programa de Exposições do Paço das Artes, que Daniel Caballero começa a apresentar questões que irão leva-lo à concepção do projeto “Cerrado Infinito”, pois é neste momento da pesquisa a partir do estudo sobre os terrenos baldios, que o artista começa um convívio constante com o “cerrado paulista” que praticamente desapareceu após anos de desmatamento dessa vegetação com o movimento desenvolvimentista da cidade de São Paulo. Aparentemente uma grande parte da cidade teria sido este cerrado um dia, uma paisagem diferente da densa floresta tropical presente na Serra do Mar, e formada de campos arbustivos baixos que se apresentavam altamente propícios para a urbanização.
Este processo desenvolvimentista se conecta com um viés ocidental antropocêntrico e que se intensificou na era moderna a partir de uma lógica industrial e maquínica com o desenvolvimento capital, gerando uma lida quase delirante do homem com seu meio. O projeto “Cerrado Infinito” abre então na produção de Caballero a articulação de um repertório mais complexo a partir dessa reflexão sobre esta postura do homem em relação ao espaço e à paisagem, a partir desta espécie de “metáfora” do Cerrado, traçando relações com o presente. 
Caballero inicia então neste contexto, a ativação do espaço da Praça da Nascente na Zona Oeste de São Paulo, como uma espécie de laboratório e zona de criação, realizando neste ambiente uma série de práticas como trilhas, caminhadas e ações de plantio com espécies da vegetação do cerrado paulista, ainda existentes, assim como desenhos, fotografias e vídeos, desdobrando então a pesquisa para um grande work in process. O artista já havia apresentado parte disso em instalações, como nas exposições “Expedição Botânica entre Avenidas Paulistanas” e “Land Art, ou, Onde podemos construir Montanhas?”. Mas agora seu trabalho ganha um tom mais hermético e conceitual e passa também a se colocar em uma linha tênue entre arte e ativismo. O espaço da Praça da Nascente se torna então uma espécie de zona de resistência e sobrevivência que abre possibilidades de reflexão sobre o espaço e a paisagem na contemporaneidade, seja em um âmbito macro ou micropolítico. 
Com o projeto “Cerrado Infinito” o artista passa a se relacionar de forma mais efetiva com uma rede de artistas contemporâneos que têm mantido procedimentos ligados aos artistas da segunda vanguarda do início dos anos de 1960 e 1970. Estes artistas contemporâneos têm de certa forma dado continuidade a essas práticas e linguagens, mas em muitos casos os atualizando. Práticas artísticas essas que lidam com os binômios arte-geografia ou arte-natureza no contexto contemporâneo. Estas práticas têm sido nas últimas décadas ativamente investigadas por pesquisadores do campo das artes a partir de abordagens transdisciplinares como é o caso no Brasil da pesquisadora Renata Marquez. 
A partir destas questões ao analisar o trabalho do artista resgatei um filme paradigmático para mim, “Fitzcarraldo” do diretor Werner Herzog. No filme o personagem Brian Sweeney Fitzgerald ou “Fitzcarraldo”, como era chamado pelos nativos da região de Iquitos, no Alto Amazonas, sonha em construir uma ópera nesta região. Anteriormente Fitzcarraldo já havia investido numa Estrada de Ferro, a Transandina, e havia falhado. Para tentar conseguir recursos com um novo empreendimento, pensa em criar uma fábrica de gelo nos trópicos. Graças a esses negócios improváveis, ele foi chamado de o “Conquistador do Inútil”.  
Finalmente, em uma determinada parte do roteiro, Fitzcarraldo consegue dinheiro e compra um grande barco fluvial, tentando encontrar uma nova rota para transportar borracha, de terras que conseguiu a autorização governamental para explorar. Com o navio, Fitzgerald se dirige ao local onde quer explorar a borracha. Alucinado, transpõe morros e matas com o barco, à custa de vidas humanas e muito sofrimento. 
Estas pulsões entre distopia, atopia e utopia presentes no filme de Herzog revelam essa relação burguesa, do homem ocidental com o espaço e a paisagem, presente nos processos de exploração e colonização de um passado não tão distante. A filósofa Anne Cauquelin em seu conhecido livro “A Invenção da Paisagem”, traz algumas considerações interessantes neste sentido; ela aponta para uma postura controladora do homem moderno em relação ao seu entorno, como uma forma de construir uma realidade social e um discurso que funcionará a partir das lógicas de poder. Para Cauquelin, é na Idade Moderna que se inicia essa construção, que é passada por filtros simbólicos e antigas heranças, ou seja, para ela só vemos o que já foi visto e o vemos como deve ser visto. Essa normatização, hegemonização e homogeneização se tornaram formas irreversíveis e cristalizadas no funcionamento de toda a sociedade, mas que têm sido repensadas por diversos agentes desde a primeira metade do século XX e de forma ainda mais intensa da segunda metade do século até a contemporaneidade. 
O projeto “Cerrado Infinito” é dessa forma um reflexo e sintoma deste momento em que se busca uma reconfiguração destas estruturas, assim como a criação de “outras paisagens”.