28.10.14

As raízes são importantes

por Mariaelena Cappuccio, Lisboa 2015.

Acaba tudo com a morte mas no meio está a vida, escondida debaixo da terra, do ruído e do silêncio, do sentimento e da emoção. As esporádicas rajadas de beleza e depois a miséria das ruínas produzidas pelo homem. O caminho é o seguinte: beleza, ruínas, re-edificação em algo de mais útil, supostamente. A geografia do mundo sempre mudou e, em São Paulo, temos noção dessa rapidez, excessiva talvez, seguindo os passeios investigadores do Daniel Caballero. A necessidade de construir algo de novo, o delírio divino do homem de modificar a paisagem para viver melhor, tirando espaço, criando voragem na terra, mexendo nela, desnorteando e tirando os seus pontos de referência geográfica. O irreprimível impulso de destruição decorre da atitude delirante de interpretação do mundo. Nesse processo todo, a falta de uma Geografia, a contínua re-construção da natureza reflecte a vontade “sobrehumana” de dominar. Dominar uma natureza que, sendo assim, aparentemente domesticada apesar da sua magnífica omnipresença. A morte está incluída no processo, como as raízes, que, pelos vistos, podem não estar bem radicadas na profunda terra, mas proliferam na superfície. Modifica-se o olhar do pedestre que convive com natureza “concreta“ - construída. Esse choque visual (e auditivo) tornou-se a normalidade paulistana documentada nas pinturas efémeras do Daniel. Desenhos que contemplam com olhar desencantado (quase distante) a natureza, um olhar contemporâneo, do concreto. No acto da observação, Caballero foi inspirado pelos primeiros naturalistas que olhavam a natureza com curiosidade analítica, catalogando as diferentes espécies (naturalmente selvagens).

E agora? A naturalidade da natureza está a modificar-se. Na cidade encontra-se uma nova paisagem com novas florestas, pedras e elementos naturais colocados pelo humano. Paisagem do concreto, montanhas. Novas perspectivas que se perdem num horizonte que no final não existe mais pois se cria uma flora cheia de novas plantas: os prédios-árvores. Uma floresta que corta assim o respiro. A realidade ruidosa da cidade vem criada a partir duma “tabula rasa”, uma parede cândida. Ai começa tudo, no princípio em mudo, com muito cuidado, quase com um traço incerto, depois acontece algo, o pincel esta beirado de verniz preto e tudo se torna confuso quase violento no seu ser. A claridade do branco vem manchada da sujidade das ruínas, pedras, pranchas de madeira e paredes partidas que ainda resistem em equilíbrio, que ameaçam cair num momento qualquer. Processo violento que cria um movimento sinuoso, misturado com a terra - físico. Daniel entra com o próprio corpo dentro da sua própria pintura, sendo quase engolido pela parede e pelas pedras, criando no final novas paisagens efémeras, que vão continuando a própria evolução em algo de diferente, melhor supostamente. A violência visiva, talvez emotiva que a cidade transmite com essas mudanças inesperadas vão ser re-criadas do Daniel quando pinta. Parece que ele também faz parte do processo de destruição, que muda tudo e que nos deixa com uma nova visão da realidade. Talvez tudo isso nos sirva para apenas perceber os mecanismos que criamos colectivamente andando por cima de nós mesmos.

* Texto realizado por ocasião da curadoria da exposição Tóxico Trópico de Daniel Caballero, na Galeria Carlos Carvalho, Lisboa, Portugal - 2015.



Premiado no salão de Ribeirão Preto- SARP 2014

Série Palimpsestos, para o SARP 2014, acervo do MARP, livros e cadernos desenhados, e varetas com arame.


No rotina da cidade, quarteirões tem seu conjunto sólido abalado pela demolição de algumas casas, formando buracos momentâneos.
Entro e piso em vivências e memórias afetivas transformadas em entulho.
Desenho apenas o que vejo.




Demiurgo Caballero

 
Por Renato Pera, São Paulo Maio de 2014.
“A cidade dá a ilusão de que a terra não existe”
Robert Smithson
 
A meu ver, o que anima a obra de Daniel Caballero é uma inclinação à entropia, um grau extremo de desordem e imprevisibilidade, em que a matéria de seu trabalho tende a um estado de falência, de saturação e de dissolução de limites. Aí reside o maior interesse de suas proposições e, especialmente, de seus procedimentos. Muitas vezes, essa tendência é o resultado de gestos conscientes – ou nem tanto - em atitudes de auto-sabotagem: se o desenho está demasiadamente bonito, se apresenta um prazer visual confortável, algum gesto inadvertido do artista e mais violento certamente manchará esta beleza. O inadvertido, o impulsivo, e o arriscado ganham muita energia em seus trabalhos. Do contrário, tenderiam para o extremo oposto, para uma beleza anacrônica e vintage. Tenderiam, igualmente, para um cinismo. Anacrônica porque não se espera que artistas hoje utilizem um repertório iconográfico de botânica, especialmente uma iconografia embebida em temas enciclopedistas e colonialistas (pensemos nas expedições científicas que se realizaram no Brasil desde o século XVII). Uma gráfica de poder, seria possível afirmar. Não me arriscaria a criar uma defesa das qualidades cínico-críticas do uso desta iconografia, pois parece-me que o artista ainda está buscando o terreno crítico no qual quer apoiar a resolução formal de sua produção. Deixar esta fenda aberta pode ser muito proveitoso. Se o discurso crítico tende à solidificar, diferenciar, impor limites ao assunto, parece-me, pois, um continente inadequado para uma obra de arte entrópica, sem forma, desajeitada.
 O artista propõe excursões com o objetivo de detectar as relações que a cidade (uma grande cidade como São Paulo) estabelece com a paisagem natural. Nesta “queda de braço” entre cidade e natureza, a cidade já ganhou, e já vem ganhando há muito tempo. Se a paisagem natural poderia despertar em nós uma emoção sublime - reverência, ameaça, terror, ou ainda, diluição em sua vastidão e potência ilimitadas - não parece ser esta a natureza apresentada pelo artista. A experiência do sublime, em seu trabalho, encontra um eco nostálgico, mas que o artista esforça-se em recompor ao armazenar num mesmo espaço amostras de plantas e de terra em seu estado natural, recolhidas em terrenos baldios, além de desenhos e estruturas que nos remetem à paisagens montanhosas. Do grande corpo sólido de terra e pedra que é uma montanha, o artista preserva somente um vestígio, uma pequena referência. O que me parece interessante é que, além de ser montanha, as estruturas são também cabanas, lugares rudimentares de proteção e abrigo, e temos uma contradição frutífera: por um lado, uma domesticação da representação da paisagem natural (movimento que a configuração da cidade realiza), e por outro, um retorno a uma condição primitiva, ao interior da caverna (novamente, entropia).
Demiurgo-Caballero. Se o demiurgo platônico reproduz a forma segundo modelos ideais, portanto impõe ordem onde a ordem não existe, Daniel Caballero parece encontrar um mundo em desmoronamento. O demiurgo torna-se uma espécie de arquivista, um ser exausto que tenta reter algo deste mundo com fita adesiva e outros materiais toscos e rápidos, antes que o mundo deixe de existir.

* Texto realizado por ocasião da curadoria da obra Land Art ou Onde podemos construir montanhas? de Daniel Caballero, na Estação São Bento do Metrô de São Paulo, como parte da 9ªSemana Metrô do Meio Ambiente - 2014.
 

Uma linha do tempo da instalação no metrô São Bento...











"Land Art ou Onde podemos construir montanhas?"




O metrô é o lugar onde a vista da janela é uma chapa preta e cega, sem profundidade. 
Nas estações, a arquitetura  é  desconectada com a  superfície, e a “paisagem” se forma pelo movimento das pessoas, que circulam refletindo seus locais de origem.

Neste trabalho “ Land art, ou onde podemos construir montanhas ? “, realizado no periodo de 05 de Junho até 31 de Agosto, á convite do Metrô de São Paulo para a estação São Bento, a paisagem humana é um importante ativador.
A produção da obra, uma instalação em duas vitrines, do lado da uma das principais catracas da entrada, foi feita á vista de todos, de forma que o dia da “inaguração” se tornou apenas uma data oficial. O trabalho começou antes ao vivo, com as pessoas acompanhando diariamente a montagem e continuou durante todo o tempo em que a obra ficou em exibição, em um processo contínuo de manutenção, experimentação e modificação.
Com uma generosa liberdade do metrô, acabei produzindo como se estivesse no ateliê, adicionando elementos coletados do entorno, criando novos desenhos e esculturas, cultivando e regando plantas, construindo e explorando montanhas naturais e exibindo videos, em um misto de performance e experimentação.

Á intenção de paisagem, se adicionavam pequenas interações dos usuários. Alguns interrompiam rotinas e solicitavam entrar na instalação para bate papos, muitas vezes longos.
Estudantes interessados nos desenhos, donas de casa imaginando um jardim, policiais fazendo ronda, crianças querendo entrar e brincar de esconder, mendigos que vinham “negociar” materiais da instalação para seus barracos, enfim, gente bem variada indo e vindo de todas as camadas da cidade.
A riqueza do cotidiano no Centro de São Paulo, me faz pensar em estações distantes com seus respectivos territórios culturais, suas relações e pessoas.

18ª Cultura Inglesa Festival




O trabalho “ Expedição botânica entre avenidas paulistanas ” proposto para o 18ª Edital Cultura Inglesa, parte da minha admiração, em duas importantes artistas naturalistas, ambas inglesas, Marianne North e Margareth Mee.
Amiga de Charles Darwin, Marianne, veio ao Brasil em 1872 pintar a paisagem e flora do Sudeste Brasileiro, registrando os últimos momentos dessa natureza, que era destruida frente ao desenvolvimento de cidades como São Paulo.  Ficava chocada com a indiferença dos brasileiros da época á preservação da floresta, que inclusive era tratada como algo a ser removido. 
Em 1956 quase cem anos depois, Margareth Mee, começa sua primeira expedição na Amazônia, uma jornada de 36 anos, que encerra com ela uma linhagem de artistas naturalistas, que incluem Rugendas, Debret, Thomas Ender, entre outros .
Com seu trabalho foi ativista pioneira na divulgação das questões de preservação da floresta.




Eu, Paulistano, imerso na paisagem de concreto de 2013, me proponho uma expedição  ao meu próprio habitat. Munido de aquarela e papel, registro orquídeas e bromélias, temas recorrentes na produção das duas, mas  agora amarradas com arames em troncos de árvore, coloridas artificialmente, vendidas em supermercados, e importadas de todas as floriculturas do planeta.
Imerso na atitude de North e Mee, me dedico ao registro desse “ecossistema”, idealizado e doméstico, revelando uma cadeia de produção e consumo de espécies hibridas produzidas como objetos de decoração, e que seja no jardim do vizinho, ou na hora de comprar o buquê de flores para a namorada, demonstra nossa percepção do mundo natural. 



que até então estavam certas para todos, e cada vez mais, parecia que não serviam para mim.

Relatos antigos perguntavam como construir uma casa em
um lugar tão inóspito, o inferno verde a ser eliminado.
Mas se antes este era o território dela, agora é meu.
Cap IV
EXPEDIÇÃO BOTÂNICA ENTRE AVENIDAS PAULISTANAS

Primeiramente evito as rotinas que a vida urbana exige, e me dedico a ficar parado. Passo desapercebido na multidão e aos poucos vou deixando de prestar atenção no ir e vir das pessoas até que ficamos todos mutuamente invisíveis.
Essa pequena preparação para explorar um território que me é tão familiar, é necessária no  redescobrimento do meu próprio habitat. Fecho então os olhos como um tipo de ritual, para quando os abrir estar em um lugar desconhecido.
A vista mostra um lugar vazio, que vai se preenchendo aos poucos com minha presença, conforme observo.
O tempo mudou, agora passa lento, e sinto a atmosfera e o cheiro particular da cidade.
Ao deixar de fazer parte do cenário cotidiano, perco minhas referências, e me torno apenas um observador solitário, imerso nessa nova paisagem, onde tudo que vejo é meu.
Começo a andar.
Uma bromélia me chama á atenção, toda verde com o centro bem vermelho, paro imediatamente, como se obedecesse um farol de trânsito.
Amarrada no tronco de uma árvore, com algumas voltas de arame farpado, quem a colocou aqui, queria determinar a disputa de mediar o lugar das coisas.

Na cidade, as plantas participam como acessórios, permitidas, desde que tenham alguma função produtiva ou decorativa, e todo o resto é tratado como erva daninha á ser eliminado.
Bromélias, orquídeas e outras plantas, dificilmente escolhem onde querem ficar, devido a sua beleza, são recolhidas perpetuamente, levando algumas á extinção, e existindo unicamente nas floriculturas.
Entro em um supermercado, onde todos compram comida e outros itens, se concentra a maior biodiversidade da metropóle.
Uma plânice de gôndolas formam uma topografia peculiar, onde múltiplas safras simultâneas com variados tipos de abóboras, alfaces e tomates de todos os lugares da terra, se encontram aqui. Caminho entre prateleiras altas que me conduzem á seção de jardinagem.
Um campo multiperfumado e colorido, de flores vestidas,em embalagens plásticas, alinhadas como um exército bonito, confunde minha vista. Não sei o que me encanta mais, se são as cores das flores, ou o reflexo da  luz que passa pelos plásticos das embalagens.
Mesmo nesse ambiente reservado, percebo um beija-flor que entra voando no recinto á procura de pólem. Aparentemente desconhece as froteiras que determinamos, da mesma forma que a planta não obedece o vaso.

Hibrídas, produzidas em larga escala, de desenvolvimento rápido, e se reproduzindo com muito sucesso, algumas destas espécies de plantas, que serão compradas aqui, vão se espalhar, colonizando desenfreadamente grandes áreas, indo muito além dos lares que as abrigam. Vão travar uma guerra vegetal silênciosa, que modifica a paisagem de forma irreversivel.

Foram criadas para atender uma tradição longínqua que começou no deserto, onde óasis eram transformados em jardins, potencializando a vida em um lugar regrado pela falta de água.
Aqui ,onde construimos nosso deserto, atendem uma nostalgia do paraiso, memórias das últimas pessoas que passsaram a infância em grandes áreas verdes, ou caprichosos paisagismos tão variados quanto á imaginação e gosto dos donos.
A paisagem anterior, totalmente erradicada, deu lugar ao único habitat possível para o homem, a cidade contemporânea, onde o espaço e sua utilização são continuamente aprimorados, para eliminar todos os problemas cotidianos. Neste planejamento não existe lugar para áreas inúteis.
Mas o que fazemos com as coisas que não sabemos que precisamos?

Texto  do livro "Viagem Pitoresca no espaço ao redor da minha casa". Na exposição um caderno solto era distribuido como fragmento do livro.

Ecomarginais


Por Juliana Monachesi, São Paulo Maio de 2014

Até outro dia eu imaginava, do alto da minha leiga ignorância, que a botânica era a mais singela das ciências biológicas. Dedicar-se a estudar plantas, flores, fotossíntese... Só poderia ser uma área do conhecimento absolutamente meiga - afinal, o que poderia estar mais distante e alheio aos ciclos históricos da realidade social humana? Mas, graças ao trabalho que Daniel Caballero desenvolveu para o Festival da Cultura Inglesa, veja você, descobri que existe um ramo da botânica altamente politizado e socialmente engajado. E ainda fica melhor, do ponto de vista estético. A grande bandeira dos botânicos militantes são os marginalizados. Aqueles que espreitam dos terrenos baldios, que vingam quando permanecem invisíveis, que se fortalecem justamente ali onde o descuido do Estado e da sociedade civil os deixa parasitando, ignorados, o bem comum. Refiro-me, obviamente, a esses honrosos membros do reino vegetal denominados... plantas nativas.

Seja marginal, seja herói, já proclamava HO. Em homenagem às marginais plantas nativas de São Paulo, que só brotam sossegadamente nos terrenos baldios da cidade - onde ninguém vai arrancá-las confundindo os arcaicos matinhos que carregam no DNA toda a ancestralidade de nossa natureza selvagem com ervas daninhas -, saio em busca de alguma historiografia marginal de arte para investigar quem seriam os precursores da expedição botânica marginal de Caballero. Todos os indícios me levam ao artista conceitual americano Alan Sonfist, que em 1965 conseguiu convencer planejadores e burocratas urbanos a ceder um terreno ocioso em La Guardia Place, Manhattan, para instalar ali seu Time Landscape, um parque de plantas nativas de Nova York. Pulularam detratores dizendo que as plantas não iriam vingar em uma metrópole contemporânea, mas não só elas estão lá até hoje, como a listinha de espécimes pré-coloniais de Sonfist hoje consta integralmente da lista de plantas autorizadas para plantio na cidade de Nova York.
O que práticas artísticas tão diversas quanto as de Caballero e Sonfist têm em comum? Bem, algumas intenções coincidentes, pelo menos: propiciar um debate público sobre um assunto desconhecido e urgente; dar a ver, por contraste, um contexto privado amplamente ignorado; talvez, quem sabe, transformar alguma coisa no processo. Em 1965, o expediente de erigir um monumento público em forma de parque - na época da land art e da escultura social de Beuys - era uma boa estratégia artística. Quase 50 anos depois, um procedimento semelhante pareceria ingênuo, datado, ou até instrumentalizado pela má consciência científica, a se fiar em Hal Foster e seu alerta sobre a banalização da arte e da política pelas apropriações mútuas entre etnografia / antropologia / sociologia e arte. Então Daniel parte em expedições urbanas e volta com uma catalogação das maiores aberrações botânicas de que se tem notícia, praticadas por... nós, moradores da metrópole.

A viagem pitoresca do artista contemporâneo, descobrimos na presente exposição, já não diz respeito à exploração de mundos inconcebivelmente distantes e inacessíveis nem tampouco a uma enumeração de espécimes e de suas monótonas características, com vistas a uma suposta análise científica, apesar da carga ficcional e subjetiva de todo relato. Hoje, a viagem pitoresca é empreendida sabendo-se, desde o início, subjetiva e ficcional; transcorre num raio de atuação relativamente pequeno, mas nem por isso menos representativo; e resulta num retrato surpreendentemente revelador não mais sobre o "outro", sobre um dado objeto de pesquisa ou uma amostragem exótica que o explorador coleta e leva consigo de volta ao seu mundo, mas sobre este seu mundo justamente, sobre aquilo que chamamos de natureza ao nosso redor, sobre o "semelhante" com que nos deparamos o tempo todo em todo canto.
Nossa ideia de natureza precisa ser revista. Nossas ideias sobre arte e ecologia também. E nossas noções sobre arte política, mais ainda. Vejo aqui nessa Expedição Botânica entre Avenidas Paulistanas um dos trabalhos de arte mais politizados que vi recentemente. Sem ser panfletário, sem deixar de ser arte por um segundo sequer, é uma obra que logra nos engajar numa questão candente. Ao mesmo tempo em que nos põe a pensar em land art, performance, naturalismo, grafite, intervenção urbana, ready made, pintura, desenho, quadrinhos, cubo branco, display, dispositivos expositivos, narrativa, racionalismo, crise da razão, modernismo, pós-modernismo, multiculturalismo, guerras culturais, geografia, etnografia...

Exposição "Ele disse: Não gosto de paisagem" na Quase Galeria.


27.10.14

Exposição "Naturantes" na Biblioteca Brasiliana da USP

Curadoria de Hugo Fortes, a exposição faz parte do II Seminário Internacional de Arte e Natureza, que ocorreu no Paço das Artes e na Biblioteca Brasiliana.
O trabalho se chama "Palimpsesto ou projetando montanhas" e continua a pesquisa dos trabalhos "Horizonte Emergente"que fiz no Salão de Itajaí em Santa Catarina, e na Quase Galeria, no Porto em Portugal.






14.10.14

Daniel Caballero | Pascal Ferreira | Ele disse: “Não gosto de paisagem. (Off we go.)”


Por  Fátima Lambert

"Por natureza entendemos o nexo infindo das coisas, a ininterrupta parturição e aniquilação das formas, a unidade ondeante do acontecer, que se expressa na continuidade da existência espacial e temporal. (…) A nossa consciência, para além dos elementos, deve usufruir de uma totalidade nova, de algo uno, não ligado às suas significações particulares nem delas mecanicamente composto - só isso é a paisagem."
Georges Simmel – Filosofia da paisagem

“…repetiu-me a definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma ópera como uma viagem de mar ou uma batalha…”
Machado de Assis – Dom Casmurro

 “A paisagem, tão admirável como quadro, é em geral incómoda como leito.”
Bernardo Soares – Livro do Desassossego, vol. II, p. 37


PERSONAGENS:
Ele (sempre ausente da peça, é uma espécie de voz da consciência).
Eles – em uníssono discordante: Daniel e Pascal.
Homem da montanha – tem uma casa incrustada no coração pois a sua matéria é a madeira
Homem do concreto (termo brasileiro para o cimento de Portugal) – usa chapéu e bermudas e faz-se acompanhar de um bloco e lápis.
Eu – que estou por aí.


CENA ZERO:
Ele disse: “Não gosto de paisagem.”
Eu digo: Off we go.
Eles (Daniel e Pascal) dizem: “vamos dentro da paisagem pois a caminhada, a viagem, a deriva e o mergulho estão lá dentro, submersos...”
Eu digo: “…avançando para uma saída luminosa?”
Eles dizem: “…hum talvez…”
Acto I
[ENTRA EM CENA O HOMEM DA MONTANHA]

Homem da montanha: “Há certa tendência em olhar as imagens – quer pictóricas, quer fotográficas – sondando o passado. Olhamo-las, não somente para um fruir estético que se proponha descontaminado, “suspendendo” outros pensamentos e razões…todavia, acaba-se quase sempre relacionando o reconhecimento (entre o) do visto com “algo”, coisificando a imagem, ao mesmo tempo que se concetualiza a imagem – no contexto de um imaginário privado ou societário. Assim, se processa esse crescendo, paralelo à nossa vida como pessoa; esse acumulo que é um arquivo iconográfico/iconológico – pois se trata de desvelar camadas sucessivas, de as decifrar…, contribuindo para o aperfeiçoamento de uma educação estética implícita.

Eu: Então, quais são as razões da paisagem? Porque se convencionou, com tal veemência, que nos atinge, assim, a contemporaneidade? Posso citar o Bernardo Carvalho que escreveu em Mongólia:
“A paisagem na arte contemporânea é uma memória de estar no mundo.”1

Homem da montanha: …precisamos tanto, sempre, de encher essa pedra da memória. A paisagem serve muito bem para dar imagens a coisas que se perderam. É mais fácil reconhecer os episódios da vida, a terem acontecido em paisagens do mundo.

“A paisagem oscila entre um imaginário empático do artista e a busca de uma realidade objectiva das plantas, dos animais, dos relevos, das cidades e de tudo o que constitui a paisagem.”2

Homem do concreto: Lá vens tu, com essa ideia do Amiel a dizer que a paisagem é um estado de alma…3

Eu: Prefiro a convição do nosso Bernardo Soares – que imaginou as suas paisagens de chuva, através da janela do seu escritório…será que as melhores paisagens são aquelas que vemos pela janela? Sem estarmos dentro das paisagens, da natureza? Bom, não me respondam…deixem-me acreditar que: “ Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado de alma.” Como eu acredito nisso…que não acredito.

[ouve-se, sem se ver na paisagem, a voz dele]

Ele disse: “Não gosto de paisagem.”
Não acredito na paisagem. Sim. Não o digo porque creia no “a paisagem é um estado de alma” do Amiel, um dos bons momentos verbais de mais insuportável interiorice. Digo-o porque não creio.”4
Homem do concreto: Acredite-se ou não na paisagem, há dias em que: “… esta é a paisagem que me pertence, e em que entro como um figurante numa tragédia cómica.”5

Homem da montanha: tu possuis todas as paisagens que existem para tu veres. Certo, é conveniente que tu as vejas ou as queiras construir do nada? Como se todas as manhãs do mundo - do Pascal Quignard – estivessem sempre na linha – possível ou impossível - da porta de casa, ali prontinhas a serem empilhadas. Cada dia que haja, farias uma torre de paisagem diferente. Mas era sempre paisagem porque na palavra paisagem não se vê nada…ou… vê-se tudo.

Eu: Oh pois! … (rsrsrs) Vejam lá, será? Como se pode concluir algo…do alto dessas torres de marfim que tu constróis? Tudo está lá dentro. Esses teus momentos rápidos, impulsos de paisagens…paisagens encarnadas, a carne da paisagem…ando às voltas de Gilles Deleuze.

“O mais que há no mundo é paisagem, molduras que enquadram sensações nossas, encadernações do que pensamos.”6
[pausa para respirarem a ideia de paisagem que é uma encarnação]


Eu: Vamos avançando com as ideias para outras bandas de paisagem. Será que ainda existe mesmo paisagem nos argumentos dos filósofos e na prática dos artistas e poetas? Porque, décadas atrás, André Lhote (Traité du paysage, Floury, 1939) escreveu acerca da “decadência da paisagem composta”, mencionando Poussin e Claude Lorrain. Que fazer…

[percebe-se que provocaram uma interrupção e não a deixam falar]

Homem do concreto: …ideia da paisagem composta… talvez aconteça; por conta dessa massa de olhares que entram e enxergam dentro da alma, quando o viajante pára e compõe a sua imagem de síntese…
 “O viajante, no seu movimento incessante, vê tudo à distância. Silhuetas recortadas contra a paisagem. Imagens arquitecturais se destacando no horizonte. Pessoas e lugares que pretende encontrar depois da próxima curva. A viagem é produção de simulacros, de um mundo puramente espectral erguido à beira da estrada.” 7

Homem da montanha: eu diria talvez, e por minha conta e risco, relembrando esse pintor alemão que andou pela América do Sul…

[sai de cena o homem do concreto]

Eu: …então, referes-te ao Rugendas?

Homem da montanha: não te apresses em falar… deixa-me falar do princípio. O Alexander von Humboldt entendeu o seu ofício como implicando a “apropriação” visual da natureza, pela via de um acúmulo de imagens que fosse via privilegiada, em termos de rigor para constituição de seu conhecimento minucioso. A imagem isolada não servia para a aderência de saber: carecia assegurar as imagens em formato conjunto, pela completude instituindo o quadro.

Eu: vais mesmo dizer isso tudo…e para quê?

Homem da montanha (sem dignar-se dar réplica, continua…): Johan Moritz Rugendas8, à semelhança e motivado pelo geógrafo, percebeu que deveria proceder, de modo a captar “fisionomia” da paisagem. Assim, viajou pelo Brasil, entre 1822 e 1825.

Eu: É. César Aira, em Um episódio na vida do pintor viajante (2000), narra exatamente as efabulações de Reguendas, no seu périplo pelas terras da América do Sul. Haja precisão, minha gente. Sejamos rigorosos…Vá-se lá saber quem nos ouça!

[Entra em cena o homem do concreto]
Homem do concreto: Perdão, regressei. Entro nessa conversa. Tem aquele outro…chamado de Sandro Lanari que é o protagonista da ficção de Luiz Antonio de Assis Brasil, O pintor de retratos (2001). O escritor narra a história de um fotógrafo que progressivamente se converte em pintor.

Homem da montanha:
“…todo artista deveria representar a natureza livre da necessidade de pré-julgamento, das representações antecipadas, visto que a natureza não sofresse a deformação do olhar preconcebido, em outras palavras, uma natureza virginal.” 9

Eu: Sem querer parecer doutrinal mas…não pode ignorar que as tradições pictóricas e artesanais já estabelecidas, foram largamente reforçadas pela nova ciência experimental e pela tecnologia. Ajudou à confirmação da importância dasdas imagens, nesse périplo, nesse caminho para o que seria um novo e inelutável conhecimento do mundo.10

[pausa, olham-se os 3 em cena]

Eu: Não dizem nada? Então, continuo…No séc. XVIII, Alexandre Rodrigues Ferreira empreendeu jornada pela Amazónia, da qual empreendeu relato pormenorizado - «Viagem Philosophica» (1783-1792) que, até hoje, enreda qualquer leitor e espetador. 

Homem da montanha: Nos tempos do antigo mundo, do mundo novo ou deste que estamos…o homem partilhou sempre essa sedução da errância, da deriva…quer na natureza, quer na cidade…Já Herman Hesse dizia:
“El caminante es, en muchos aspectos un hombre primitivo, del mismo modo que el nómada es más primitivo que el campesino. (…)

Homem do concreto: oh! …por certo! Mas ele diz mais, ainda:
“Porque soy nómada, no campesino. Soy amante de la infidelidad, del cambio, de la fantasía. 11
E, meus queridos amigos desta conversa, se não se importam, vou tomar um cafezinho. Já volto.

[Aliás, saem todos de cena, tornam-nos cegos do que se passa]

Eu: Concordo com Herman Hesse quando, em Wanderer, assinala que “vencer o sedentarismo e depreciar as fronteiras converte as pessoas da minha classe em postes indicadores de futuro.”12

Homem da montanha: … porque retomas o que eu disse? Hum…enfim. Entendo. Gostas de dizer o dito…para que não se perca.

[gera-se a expetativa da pausa]
Eu: No Ocidente, a paisagem é breve.

Homem do concreto: “Continuo desenhando rápido enquanto a paisagem desaparece.”


Acto IV

[estão todos em cena e vislumbra-se uma janela ao fundo com vista sobre uma rua]
    Eu: (…o que leio…)
“A paisagem em volta esvaziada de sentido, reflectindo-se nos meus olhos, brotava dentro de mim…” 13

Eles: Isso significa… Trazer a paisagem para dentro: foi olhada [essa vista] através de fotografias. Paisagem que entra dentro de casa: o exterior converte-se em interior, instalando-se, residindo, ainda que provisoriamente, “dentro”.

Homem do concreto: estamos a falar do processo de elaboração dos desenhos. O tema iconográfico corresponde à vista pela janela grande da Galeria… e foi por mediação.
Eu não estava ainda aqui. Tu (dirigindo-se a Eu) enviaste-me as imagens daqui. Olhaste pela janela e eu, o artista (apesar de homem do concreto) desenhei essas tomadas de vista, atribuindo-lhes uma nova identificação e caraterísticas.

Eu: tu não és homem concreto (do concretismo…) mas do concreto…

Homem do concreto: Falando sério. A metodologia de trabalho: para a produção dos desenhos, vi as fotografias do lugar: ou seja, a vista direccionada (entre as muitas possíveis), dirigindo-se para a rua.

Eu: Pois. O lugar, a vista eram-te desconhecidos, ou seja, não tinhas a vivência direta. O local, portanto, era-te “estrangeiro” (anónimo) e fixaste-o em registo.

[parou]

Homem do concreto: …apropriando-se de forma intermediada – pois o ângulo de tomada de vista não foi decidido por ele. Era isso que ias falar a seguir?
Homem da montanha: Pense-se quanto uma vista de um lugar específico – “conhecido” e/ou “nominado” – configurado na imagem fotográfica se transporta para algo “mastigado” e decidido […ainda que des-conduzido… (murmurei, entre dentes)] pelo olhar do artista.

[ouve-se uma voz off]

Voz off: Como uma paisagem real, um excerto de natureza vocacionada pela determinação de alguém, passa a usufruir a condição de paisagem imaginada, mas não imaginária. Tratar-se-á de atos sobreposicionais. O desenho concretizado em papel e depois o desejo de alastrar pela parede lateral da galeria: eivado de um sentido de desprendimento, despojamento…deixar ficar, prescindir. E, de modo imperceptível, futuramente, ser mais uma camada do palimpsesto.

[de tão inesperada se ouviu a voz que os presentes entenderam retirar-se. pausa de café e fatia de bolo de chocolate – caso houvesse…]

Acto V
Eu: Regressamos. Lembrei-me daquele diálogo do Mondrian…entre o pintor naturalista e o pintor abstrato…(rsrsrs) estamos a imitá-lo…Mas seja.

Homem da montanha: Construí.

Eu: Tu acreditavas.

Homem da montanha: Cada pedaço de madeira e eu acreditava. Cada desenho da paisagem inventada e eu acreditava.

Homem do concreto: E eu, também. Cada caminhada na cidade, por entre aquilo que hoje está e amanhã, não mais se vê. Acredito na paisagem, talvez. Na sua condição de não ser dominada; mas tampouco que se deixe dominar, isso não.

Homem da montanha: Por isso, vês a minha casa no lugar do coração. A cidade ou lá o que seja isso, está dentro. Construi a realidade da paisagem dentro de mim. Fora vêem a carne da paisagem. Assim, viajo.

Homem do concreto: Vês a espessura dos meus desenhos das paisagens? É a pele que engrossa nas paredes porque os dias se seguem e pousam em cima das árvores e das pedras. Quase chegava dentro das paredes, como se fosse um mar de pedra.

Homem da montanha: eu quase chegava à ilha, talvez o Gilreu na beira da praia, em frente a linha do horizonte - que o Alexandre Rodrigues Ferreira14 atravessou…

Eu: ele viajou pela Amazónia, numa expedição filosófica. Era o séc. XVIII. Na Universidade que, em 1772, teve uma reforma, considerava-se que a Filosofia Natural carecia, não somente de fundamentação teórica, mas crítica. Assim, os naturalistas empreenderam esse programa de expedições, como hoje se designaria. E de lá trouxe imagens e coisas. Também ele foi um riscador. Assim os denominavam, aqueles que desenhavam o que fosse enxergado, visto.

“Julgamos que nos libertamos dos lugares que deixamos para
         trás de nós. Mas o tempo não é o espaço e é passado que está
diante de nós.” 15

[saem de cena todos, sem justificarem ausência. não se sabe se regressam]


* Texto realizado por ocasião da curadoria da exposição, "Ele disse: “Não gosto de paisagem. (Off we go.)" com Daniel Caballero e Pascal Ferreira, na Quase Galeria , Porto, Portugal - 2015.